Folha de S. Paulo


'Afterimage' faz retrato contraditório de pintor morto pelo stalinismo

Luli Penna/Editoria de Arte/Folhapress

Há coisas muito bonitas no começo e no fim de "Afterimage", último filme feito pelo polonês Andrzej Wajda, agora em cartaz no Frei Caneca e no Reserva Cultural.

Vemos, no início, um pintor em seu ateliê, diante da tela em branco. Subitamente, a tela se cobre de vermelho: é que, filtrando a luz da janela, um imenso cartaz em homenagem a Stálin acaba de ser erguido na fachada do prédio.

Pouco antes do final do filme, manequins balançam sinistramente os braços e as pernas na frente de uma loja, pendurados em fios de arame.

O simbolismo dessas cenas é bastante claro, tratando-se da história real de um artista de vanguarda (WBadysBaw StrzemiDski, 1893-1952), perseguido por não aderir aos preceitos do realismo socialista impostos pelo poder soviético na Polônia.

O vermelho se sobrepondo à vontade do artista e os fantoches sem vida tomando conta da vitrine são imagens bastante legíveis –funcionam quase como legendas explicativas– daquilo que o filme pretende.

Ao mesmo tempo, entram de modo perfeitamente natural e realista no contexto da história. Poderiam estar do mesmo jeito no filme, ainda que não quiséssemos interpretá-las como metáforas políticas.

Ao contrário do que acontece em filmes "estranhos" –penso nos que estiveram em moda nos anos 1970, como "Coração de Cristal", de Werner Herzog, ou "A Estratégia da Aranha", de Bernardo Bertolucci–, não há alegorias no filme de Wajda.

Isto é, não se tornou necessária a intervenção de algo fantástico, implausível, "incompreensível", externo ao jogo proposto. Ponho "incompreensível", entre aspas, porque em tese qualquer doideira pode ser decifrada pelo especialista.

O problema não está na doideira em si, mas no fato de que ela só subsiste, só se justifica plenamente, quando temos acesso a seu conteúdo oculto.

Claro que se pode apenas curtir o delírio visual de um diretor. Mas o filme no qual o "alegórico" irrompe no meio do caminho só se sustenta quando dispomos de uma chave de leitura "importada", alheia às coordenadas iniciais.

No caso de "Afterimage", nenhuma chave interpretativa é exigida pelo diretor. As coisas são o que são –ainda que, se quisermos, possam significar outras coisas ao mesmo tempo.

Acredito que esteja aí o truque, ou a grandeza, de toda arte realista –e não deixa de ser um paradoxo que, num filme em defesa de um pintor de vanguarda, Andrzej Wajda tenha seguido tão bem os procedimentos "normais" dessa estética.

Claro que esse realismo tem pouco a ver com aquilo que Stálin e seus adeptos exigiam dos artistas naquela época. Queriam simplesmente uma representação fotográfica das coisas e, ao mesmo tempo, algo que "mobilizasse as massas"; queriam exatidão e propaganda, ou seja, verdade e mentira.

Compreende-se que um pintor autêntico, como StrzemiDski, não tinha como obedecer ao que os burocratas da cultura exigiam dele. "Afterimage" relata o cerco de que ele foi vítima, numa ilustração impressionante do que se pode fazer, num regime centralizado, contra a independência –afinal inofensiva– de um mero artista e professor.

Sem emprego, ele não pode ter acesso aos cupons de alimentação. Sem carteira do sindicato, não pode arranjar emprego. Não pode nem sequer comprar tintas para pintar.

Divulgação
Boguslaw Linda em 'Afterimage', no papel do artista vanguardista Wladyslaw Strzeminski
Boguslaw Linda em 'Afterimage', no papel do artista vanguardista Wladyslaw Strzeminski

O horror que todo aquele sistema inspira no espectador não se acompanha, infelizmente, de muita simpatia pelo personagem principal. Talvez StrzemiDski tenha sido realmente assim –obstinado, inflexível, taciturno–, mas a fidelidade do diretor ao seu retratado corre o risco de ter sido, no caso, realista demais.

Há diferença, acredito, entre ser herói e ser simplesmente suicida, entre ser convicto e ser fanático. Se a sua inflexibilidade torna sua existência impossível, você está apenas dando a vitória a seu adversário.

Tudo bem, se sua morte servir de exemplo, ou se impedir a desgraça de outros. Mas um sacrifício anônimo, que ainda por cima destrua a vida da filha, da namorada ou de alguns discípulos, não sei se vale a pena.

Teríamos de ver o pintor num diálogo fictício com algum personagem, explicando suas escolhas e analisando alternativas possíveis... Mas Wajda preferiu, imagino, mostrar o pintor em sua completa antipatia, numa frieza que se volta contra amigos e inimigos por igual. Filmou as coisas como eram –e seu realismo terminou pesando a mão.


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