Folha de S. Paulo


Caminho de volta

Como tantos outros brasileiros, tive ou tenho o sonho de morar em outro país. Sonho não é bem a palavra, porque sugere no mínimo a possibilidade de um projeto.

Para mim, as coisas se resumem a uma vaga pergunta: e se eu ficasse uns anos fora do Brasil? Vem logo em seguida outra pergunta: sim, mas onde? Fazendo o quê? É o bastante para que eu desista do assunto.

Não tive coragem nem mesmo para a clássica bolsa de estudos, terminada a faculdade, ou para o ainda mais corriqueiro, embora não tanto no meu tempo, intercâmbio da adolescência.

"Caminho de Volta", filme de José Joffily e Pedro Rossi em cartaz no cine Belas Artes, mostra de um modo muito particular, muito íntimo, muito cálido, o destino de duas ou três pessoas que escolheram viver fora do Brasil.

Em seus documentários, Joffily manifesta um marcado interesse pelo homem comum. "Vocação do Poder" (2005) acompanhava alguns jovens cariocas que pela primeira vez se lançavam a uma campanha eleitoral.

Eram personagens banalíssimos, em geral contando com o apoio de famílias igualmente banais –até mesmo a história do filho de um político clientelista da periferia não apresentava nada mais do que "gente como as outras", reunida, digamos, num almoço de domingo.

De certo modo, é uma estratégia inversa à de Eduardo Coutinho –que escolhe pessoas aparentemente normais para revelar, ao longo de uma entrevista, o que houver de excepcional no seu destino ou de quase louco em sua personalidade.

Quanto mais Joffily se aproxima de uma pessoa, mais ele a depura do que tiver de estranho ou curioso. É sobretudo a humanidade comum –no duplo sentido do termo–que o fascina.

Veja-se o caso de André, em "Caminho de Volta". Ele é um fotógrafo, vivendo em Londres há uns 20 anos. Uma particularidade sua logo salta à vista: ele não tem uma perna, e quando tira a camisa vemos cicatrizes em seu corpo.

O filme mostra uma visita de André ao posto de saúde pública londrino e uma conversa que se passa ali sobre as próteses que lhe são oferecidas.

Mas nada ficamos sabemos sobre o acidente que ele terá sofrido, e pouco se menciona das suas dificuldades de locomoção. O "humano" de tudo é mais simples e está em outro lugar.

Com problemas para achar trabalho –houve uma mínima alusão a um passado de crise depressiva e alcoolismo–, André está fazendo as malas para voltar ao Brasil. Teve dois casamentos na Inglaterra e não conseguirá trazer os filhos e a atual mulher para cá se não encontrar algum contrato estável de trabalho.

As famílias de lá e também a família brasileira (pai e mãe estão vivos) acompanham sua situação. A câmera chega mais perto, sempre mais perto, dos ambientes fechados, apertados, de seu apartamento em Londres. Assistimos ao vivo a uma crise entre André e sua jovem mulher inglesa.

Certo, o choque cultural está presente. A moça quer compromissos claros e menos "enrolation". Mas André mistura tipicamente uma atitude de certo otimismo com uma grande dose de desorientação prática.

Um bocado mais estranha é a outra personagem do filme, que irá largar sua vida em Nova York para voltar ao Brasil depois de quase 30 anos. Ela tem 87; estava lá para cuidar do filho, estabilizado profissionalmente.

Finalmente ele vai se casar: dona Maria do Socorro não tem mais o que fazer ali, não será a "sogrona" a atrapalhar a vida conjugal do filho, volta ao Brasil para encontrar as irmãs e um país que talvez já não seja o seu.

Particularidades não faltam a essa senhora. Durante anos a fio, ela escreveu em cadernos e mais cadernos uma oração obsessiva, sem separar linhas nem parágrafos, pedindo a Deus que o filho arranjasse seu "green card" e uma boa mulher.

Maria do Socorro praticamente não sai de casa e fica assistindo ao noticiário em espanhol. O filme sugere que, mesmo depois de décadas nos Estados Unidos, ela nem mesmo fala em inglês.

Pouco importa: como no caso de André, o filme vai simplesmente nos familiarizando aos poucos com a situação, sem explicar nada, sem "contar" nada. "Familiarizar" é uma palavra importante em "Caminho de Volta".

São as famílias, os afetos básicos, as fidelidades de sangue e de amor que seguram essas pessoas em terra estrangeira. E que irão protegê-las, agora que se encaminham para o verdadeiro exílio –um país chamado Brasil.


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