Folha de S. Paulo


Meu primeiro assédio

Assim como Antonio Prata ["Cotidiano", 1º.nov, pág. B8], fiquei espantado com a quantidade de amigas e conhecidas que revelaram, na internet, terem sido vítimas de algum tipo de assédio sexual na infância.

Ou era o tio que começou a fazer carícias por cima da calcinha, ou o bedel pressionando contra a parede, o irmão da amiga que agarra a menina, o desconhecido na praça que se masturba.

Parece haver um iceberg de pedofilia e excitação em nossa sociedade, e, pela faixa etária de muitas depoentes, não há como responsabilizar a televisão pelo fenômeno.

A coisa é mais complicada. Se a pedofilia tornou-se, de uns tempos para cá, o crime mais abominado e chocante do planeta, talvez isso se deva ao fato de que só se rejeita realmente aquilo que, de alguma forma, não queremos ver dentro de nós mesmos.

Aos poucos, essa atração pelas crianças veio à tona, sem que estivesse associada a nenhum intuito perverso. De personagem subalterna e algo aborrecida, a criança tornou-se o centro de todas as atenções.

De um lado, tornou-se reprovável encará-las como crianças apenas: suas opiniões, seus desejos, seus medos, suas birras –numa palavra, suas criancices– passaram a ser consideradas com extrema seriedade, e mesmo subserviência. Por mais tempo e com mais frequência do que antes, passamos a tratá-las como adultas.

De outro lado, é como se a fonte de encantamento que todas elas certamente representam tivesse ganhado maior "explicitude", se posso assim dizer. Minha mãe, que nasceu em 1919, estranhava muito os faniquitos que as mulheres mais jovens tinham com seus bebês.

Coisas comuns hoje em dia a deixavam chocada. Por exemplo, a mãe que chega perto do bebê e, num transporte de carinho, exclama "ai, que vontade de morder!", ou "ai, que vontade de apertar!"

De minha parte, não entendo o hábito de dar "selinho" na boca do próprio filho.

Nada disso, claro, é criminoso. Exatamente porque não é, vem à tona normalmente e foi deixando de ser reprimido.

Mas na medida em que essa "sensualização", ou se quisermos essa proximidade física, se faz mais corriqueira, aí começamos a reparar mais no quanto está presente a possibilidade de se transpassar o limite que conduz ao abuso e à violência.

Estes sempre existiram, mas estavam aparentemente muito mais longe de nossos olhos.

Agora, então, tudo assume uma clareza ofuscante nos relatos dessas celebridades, dessas amigas, dessas pessoas que, afinal de contas, estão por aí, vivendo, trabalhando, amando e tendo filhos, sem que o "primeiro assédio" lhes tenha destruído irreversivelmente o funcionamento da psique.

Meu medo é que a partir de agora um evento de assédio (que sempre foi e será chocante) venha a ter consequências muito mais graves do que teve em gerações passadas. De todo modo, a vantagem é que estamos preparados para prevenir e reprimir com mais atenção.

Sartre dizia que o importante não é o que fizeram conosco, mas o que fazemos com aquilo que fizeram conosco.

Ah, também tenho um episódio de assédio para contar. O ônibus estava meio cheio, eu tinha 11 ou 12 anos, um homem se esfregou em mim. O maior "perigo", talvez, seria se eu tivesse sentido alguma coisa.

Mas não; quando comecei a reparar no que estava acontecendo, o homem já tinha ido embora. Eu não estava preparado para identificar de imediato o que ele fazia. O comportamento me pareceu estranho, e eu não era inocente a ponto de desconhecer o sentido daquilo.

Era algo estranho, só isso –como se eu tivesse reparado que havia um bêbado dentro do ônibus, ou se tivesse visto alguém falando sozinho. Aquilo, de certa forma, não me disse respeito; situei a atitude do homem na "terceira pessoa", por assim dizer, sem que meu "eu" estivesse envolvido no fato.

Tanto foi assim, que não tive vergonha de contar o episódio a um colega de escola –cuja curiosidade por detalhes se manteve, também, nos níveis da normalidade.

Trauma? Acho que não, e felizmente imagino que, se alguém se dispõe a contar coisas assim publicamente, não se trata de um drama decisivo. Tanta coisa me "traumatizou" na infância... tantos vexames, tantos erros, tantas frustrações! Até os sucessos.

A ofensa de ser tomado como puro objeto, e ainda por cima sem saber, é evidentemente enorme; condeno e lamento a sorte dos perpetradores. Que a doença deles não nos contamine.


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