Folha de S. Paulo


"Vocês não estão entendendo nada"

A violência que explodiu nos subúrbios pobres de Paris e se espalhou pela França desde o final de outubro também atingiu, como não poderia deixar de ser, a imprensa francesa.

Um aspecto importante da cobertura foi a descoberta de que os jornalistas não eram bem-vindos. Os profissionais escalados para a linha de frente sofreram com a hostilidade e, em várias ocasiões, foram recebidos com agressões pelos moradores dos bairros conflagrados, que não fizeram distinção entre repórteres, policiais, bombeiros ou políticos. Para eles, era tudo igual.

O próprio repórter da Folha, Fábio Victor, sentiu na pele o ambiente hostil, como relatou na reportagem "Cidade onde tudo começou é assustadora", enviada de Clichy-sous-Bois e publicada domingo passado.

O AMBIENTE HOSTIL
A imprensa francesa é acusada por ação -sensacionalismo- e por omissão -os bairros periféricos só são visitados e viram notícia quando são palco de crimes ou de fatos negativos. A cobertura esporádica e focada quase exclusivamente na violência acaba contribuindo para ocultar o quotidiano discriminado das pessoas e reforça a exclusão e o preconceito.

Foi o que constatou o ombudsman do "Le Monde", Robert Solé, que recebeu várias cartas de leitores indignados com a cobertura do jornal. "Ao longo dos últimos 20 anos, vocês participaram ativamente do tabu da imigração", escreveu um deles. Outro, dirigido aos próprios jornalistas: "Vocês não estão entendendo nada, confortavelmente instalados nos seus apartamentosinhos da Rive Gauche!".

Ao acompanhar o que aconteceu na França nas últimas semanas, é difícil não relacionar com a situação explosiva das nossas "periferias" também excluídas. Aqui não vivem os árabes e africanos imigrados, mas uma população igualmente discriminada e sem oportunidades.

Os jornais brasileiros estão atentos a essas questões? Ou a cobertura que fazemos é igualmente esporádica, preocupada apenas com a criminalidade e, portanto, estimuladora de preconceitos?

NAS FRANJAS DA REPÚBLICA
O editorial "Rebelião francesa", publicado pela Folha no domingo passado, poderia ser aplicado ao Brasil: "É difícil não ouvir nessas manifestações o grito de quem se sente condenado a viver para sempre nas franjas da República. Encontrar formas de oferecer trabalho e perspectivas de ascensão social a esses setores da população é fundamental. Mas apenas isso não basta. Um longo caminho terá de ser percorrido até que os dois "lados" se reconheçam como parte de uma mesma nação".

O jornal "O Globo", que reabriu, no final de setembro, a discussão sobre o que fazer com as favelas do Rio, um tema tabu desde a política de remoções dos anos 60, publicou sexta-feira um editorial sobre os acontecimentos na França ("Vozes da periferia") com uma indagação que também, guardadas as diferenças, se aplica ao Brasil: "No fim, é de supor que a lei e a ordem prevalecerão. Mas até quando? O problema, de múltiplas causas que ultrapassam a esfera policial, da repressão pura e simples, não desaparecerá por si mesmo. Tem a ver, inegavelmente, com exclusão social, a dificuldade encontrada por imigrantes de antigas colônias na África para serem aceitos como franceses, apesar de ser essa a nacionalidade que consta em seus documentos de identidade. Como é que alguém pode se sentir parte de uma sociedade que lhe nega emprego?".

O TREM DE ITAPEVI
Volto à questão: os jornais brasileiros estão atentos a essas questões? Sabemos o que está acontecendo nas nossas favelas e nas cidades-dormitórios da periferia das regiões metropolitanas?

O leitor Sergio Alexandre Antunes de Carvalho, de São Paulo, acha que não. Ele não escreveu para o ombudsman por conta dos conflitos na França. Mas a sua carta traz um questionamento pertinente.

"Problemas com o movimento no aeroporto de Congonhas. Filas no check-in e no trânsito das imediações. Percorrer 900 metros de carro pode chegar a 30 minutos. Não há vagas no caro estacionamento. Tudo isso merece a capa do caderno "Cotidiano" (16/11, quarta-feira) e mais a coluna esquerda da capa do jornal, com direito até a gráfico.

Por outro lado, a Companhia de Trens Metropolitanos desativou o trecho de Itapevi a Amador Bueno há uns 15 dias, substituindo-o por ônibus que andam abarrotados, prejudicando idosos, mulheres e crianças de um bairro mais populoso que os bairros dos usuários do aeroporto. E nem uma mínima notícia sai no jornal!".


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