Folha de S. Paulo


No Haiti

Não se pode dizer que a Folha não dê atenção à crise do Haiti. Mas o jornal errou ao trazer de volta, antes de encerrada a apuração da eleição presidencial, a equipe que enviou para Porto Príncipe.
A Folha acompanha regularmente o noticiário da ilha, enviou vários repórteres para lá desde que o Brasil passou a chefiar as tropas da ONU e só neste ano publicou três editoriais sobre o drama dos haitianos e o papel do governo brasileiro.

A atenção se justifica. Em primeiro lugar, porque o Brasil não desempenhava um papel internacional dessa natureza há muito tempo. Ao enviar soldados, o governo brasileiro mexeu em sentimentos nacionalistas adormecidos. Só assim se entende a cobertura inflada e acrítica que marcou a preparação e o embarque das tropas. Outra razão a justificar tanta atenção é o fato de que a participação do Brasil faz parte de sua estratégia para obter um lugar no Conselho de Segurança da ONU.

Mas o motivo mais importante é que a situação daquele país é de total calamidade. Ao pisar em solo haitiano, o Brasil se meteu numa grande confusão, e há questionamentos sérios, por parte de entidades internacionais, em relação ao comportamento das tropas da ONU comandadas pelos brasileiros.

Só neste ano, o jornal destinou uma página de sábado da seção "Tendências e Debates" para discutir se o Brasil deve continuar ou não a missão no Haiti, enviou, em janeiro, o repórter Iuri Dantas para Porto Príncipe ("Só incerteza sobre o futuro une haitianos") e fez uma ótima reportagem com soldados brasileiros que voltaram da ilha ("Soldados revelam o horror da vida no Haiti", 29/1).

Diferentemente de outras ocasiões, a equipe de repórter e fotógrafo que a Folha enviou para cobrir as eleições presidenciais, Fabiano Maisonnave e Jorge Araújo, chegou a Porto Príncipe com alguma antecedência. A eleição estava marcada para o dia 7, e a primeira reportagem ("Haiti está pronto para a eleição, afirma general Elito") foi publicada no sábado, dia 4.

O jornal deu destaque para a cobertura no domingo, dia 5 ("Haiti tem candidatos suspeitos de crimes"), e nos dias seguintes, inclusive com chamadas e fotos na primeira página. A eleição foi tumultuada e a apuração, mais ainda. Era de imaginar que a equipe de jornalistas permanecesse em Porto Príncipe até o final da apuração. Mas não foi o que ocorreu.

A última reportagem foi publicada no domingo, dia 12, e apontava de forma clara para os problemas que estavam por vir. Segundo o texto do repórter, pela primeira vez desde o início da apuração o candidato favorito, René Préval, ficara abaixo dos 50% dos votos válidos que garantiriam a vitória no primeiro turno. Maisonnave previa "protestos violentos" caso Préval não vencesse no primeiro turno.

E foi o que ocorreu. Mas a Folha já não estava lá para acompanhar as denúncias de fraude e a seqüência de manifestações populares que encurralaram a comissão eleitoral e obrigaram os países que monitoravam a apuração, entre eles o Brasil, a impor a manobra que garantiu a vitória de Préval e evitou um imprevisível segundo turno.

Não entendi por que o jornal retirou a equipe antes da hora. Não posso crer que tenha sido por questões financeiras.

Escrevi na crítica interna de terça: "É incompreensível que o jornal não tenha mantido o enviado especial ao Haiti para cobrir as eleições presidenciais até a divulgação final do resultado. Nada fazia supor que seria uma apuração tranqüila. O resultado está nas páginas de hoje -"Brasil pede que conselho da ONU avalie Haiti" e "Protesto deixa primeiro morto; hotel é invadido'-, noticiado com a ajuda de agências internacionais e a partir da Sucursal de Brasília".

Pedi uma explicação e o jornal admitiu o erro. Eis a resposta que recebi do jornalista Marcos Guterman, editor interino de Mundo: "Sim, considero que foi um erro não ter mantido o repórter Fabiano Maisonnave no Haiti por mais tempo. Nosso planejamento para essa cobertura foi prejudicado pela evolução confusa dos acontecimentos, sobretudo a demora na contagem dos votos e a crise que isso ocasionou. Devo enfatizar que esse problema não aconteceu só com a Folha -os repórteres mandados pela concorrência deixaram o Haiti um dia antes do nosso".

É verdade, os jornalistas enviados pelo "O Estado de S. Paulo" e pelo "O Globo" também voltaram para casa antes da hora. Mas isso não justifica o erro da Folha. Revela apenas que os nossos grandes jornais erraram juntos.


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