Folha de S. Paulo


As armas da imprensa

O país vota, daqui a 15 dias, o referendo sobre a comercialização de armas de fogo e munição. As campanhas do sim (favorável ao fim da comercialização) e do não (contra a proibição) estão nas rádios e TVs. Três revistas trouxeram a disputa para as suas capas com pontos de vista distintos.

A "Época", 420 mil exemplares, fez uma apresentação neutra: "Armas, entenda antes de votar. O que pode mudar em sua vida com o plebiscito do dia 23". A "Trip", revista mensal voltada para jovens, 50 mil exemplares, defendeu o sim: "Por que você deve optar pelo desarmamento". E a "Veja", campeã de vendas com 1,1 milhão de exemplares semanais, foi categórica: "7 razões para votar Não - A proibição vai desarmar a população e fortalecer o arsenal dos bandidos".

A cobertura da grande imprensa, incluindo a Folha, é francamente favorável ao sim. A grande surpresa foi a "Veja", e por duas razões: por ter defendido o não, na contramão do posicionamento predominante, e por tê-lo feito por meio de uma reportagem opinativa, como se fosse um editorial, o que contraria os cânones do jornalismo que se pretende "imparcial".

A "Veja" é assim, de opiniões polêmicas, e seus leitores, imagino, estão acostumados com essa linha editorial. A busca da imparcialidade e da objetividade deve ser compromisso permanente da imprensa. O que não significa que os veículos não possam ou não devam se posicionar.

O Tribunal Superior Eleitoral negou, na semana passada, representações contra a circulação da "Veja" e da "Trip" por entender que elas não estão impedidas de assumir posições políticas durante a campanha.
O ideal, acredito, é que cada jornal e revista seja pluralista, que abra espaço para as diferentes posições que disputam a opinião pública. Mas a diversidade deve estar contemplada, principalmente, pelo conjunto da imprensa. É possível? É um objetivo distante enquanto a principal marca do nosso modelo de comunicação for a alta concentração de empresas, de audiência e de publicidade.

De qualquer modo, acho salutar que as revistas tenham posicionamentos distintos sobre o referendo. É um bom sinal, sem entrar no mérito da qualidade das reportagens. São opções jornalísticas e o leitor escolhe. O fundamental é que os jornais e as revistas tornem público seus compromissos editoriais. A isso se chama transparência.

A Folha se declara, no "Manual da Redação" e no Projeto Editorial, comprometida com um jornalismo crítico, pluralista e apartidário, preservado das opiniões da empresa. Consegue? Nem sempre.
No caso do referendo, o jornal é favorável à proibição do comércio de armas. O editorial "Contra as armas" (15/5) defende o sim, embora outro editorial (27/7) tenha alertado que a proibição deve ser vista com cautela, "para não alimentar ilusões". O noticiário se esforça para fazer uma cobertura isenta, que contemple as duas posições em jogo, mas a análise de reportagens recentes mostra que a simpatia pelo sim influencia o resultado final.
O caderno Folhateen, destinado aos jovens, reservou a capa do dia 3 para o referendo. O título foi na linha de prudência do editorial: "Adeus às armas?". E a proposta da reportagem era de orientação: "Conheça os argumentos de quem defende e de quem é contra a medida". Mas as duas páginas internas trouxeram três depoimentos favoráveis ao sim, sendo um deles de uma celebridade, o músico Marcelo Yuka, e apenas um, de um estudante de jornalismo, em defesa do não. Isso é equilíbrio?

No dia 22 de setembro, o jornal publicou uma notícia sobre a morte de um garoto: "Jovem de 15 anos pega arma do pai e mata colega de 11 com tiro no Rio". No pé da pequena nota havia um intertítulo lembrando que no dia 23 vai ser realizado o referendo. Sutil. São escorregões.

A cobertura do referendo coloca a imprensa mais uma vez na berlinda. Há uma expectativa grande de que, mais do que se posicionar, ela possa ajudar o leitor a entender o que está em jogo. Num país como o Brasil, onde o ensino é precário e pouco se lê, onde quase não existem fóruns de análise e de debate, a produção universitária é pequena e mal difundida e onde a publicidade oficial dos governos (todos) é eleitoral, a imprensa passa a ser cobrada por funções que não são só suas.

A frustração é permanente porque ela não consegue dar um tratamento aprofundado para os assuntos mais complicados. Seja por que não está preparada, seja por que é dispersa e sem foco, seja por que não está atenta para os grandes problemas, mas apenas para a sua própria pauta, a verdade é que temas mais complexos são tratados de forma superficial e sem continuidade.
Agora mesmo estamos vendo isso acontecer com o projeto de transposição do rio São Francisco (foi preciso um bispo fazer greve de fome para despertar a imprensa sobre o tamanho dos conflitos que estão em jogo).
No caso do referendo das armas, acho difícil que a imprensa possa ainda trazer alguma racionalidade à discussão. O que vai orientar o voto agora, infelizmente, não é mais o debate nem a informação isenta, mas as propagandas oficiais carregadas de distorções e mistificações.


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