Folha de S. Paulo


O nó na imprensa

Comentei, na semana passada ("As armas da imprensa"), a cobertura jornalística do referendo do ponto de vista da isenção. Em resumo, a minha avaliação é a de que a imprensa, majoritariamente a favor da proibição da comercialização de armas e munição, não consegue esconder essa preferência nas reportagens que faz.

Há outro aspecto nesta cobertura que merece reflexão: a dificuldade que têm os jornais e as revistas (as TVs e rádios mais ainda) em coberturas que exigem capacitação técnica e especialização. A situação fica crítica quando os meios são obrigados a acompanhar e a esclarecer para seus leitores, simultaneamente, vários temas complexos -como acontece, neste momento, com o referendo (que coloca a questão da segurança pública em discussão), a transposição do rio São Francisco, a seca na Amazônia e a febre aftosa- em meio à cobertura de uma crise política longa e gravíssima.

Que efeitos reais o resultado do referendo poderá ter na segurança pública? Afinal, o projeto da transposição é bom ou ruim, o Nordeste melhorará ou não com a sua implementação? Como explicar a seca numa região coberta de florestas e cortadas por grandes rios? O que provocou de fato o ressurgimento da febre aftosa no gado mais bem cuidado do país do gado? As pessoas estão confusas e a imprensa nem sempre ajuda a esclarecer.

AS CAUSAS
Atribuo a dificuldade de entender e explicar os assuntos complexos a várias razões. A primeira, estrutural, é a própria formação deficiente dos jornalistas, o que não chega a ser uma exclusividade da profissão.
Outra razão é a resistência das empresas e dos próprios jornalistas à especialização. É próprio do jornalismo a valorização da capacidade de improviso, a convicção de que devemos estar preparados para enfrentar qualquer situação ou assunto e de que somos generalistas. São atributos indispensáveis, mas os melhores jornalistas são os que, além disso, têm uma ou mais áreas de especialização, o que implica domínio dos conceitos, de legislações, de estudos, de políticas públicas e de fontes de informação.

A especialização das redações vem ocorrendo de forma irregular. Algumas áreas estão bem avançadas, principalmente no jornalismo econômico e no jornalismo científico. Há ilhas de especialização na cultura, em áreas como saúde, educação e ambiente, como exemplos. Mas, em momentos como agora, ficam flagrantes as lacunas nas redações. Temos excelentes repórteres nas ruas cobrindo a violência e a criminalidade, mas pouquíssimos preparados para entender os aspectos sociais, políticos, econômicos e jurídicos da violência e da criminalidade. Temos repórteres corajosos, mas poucos que sabem trabalhar com as estatísticas e conseguem acompanhar os estudos especializados. Sabemos descrever uma ocorrência, mas não estamos preparados para cobrar das polícias eficácia nos procedimentos técnicos e de inteligência.

No caso do referendo, leitores e telespectadores já devem estar enlouquecidos. As leis, experiências e estatísticas de países como EUA, Suíça e Austrália servem para argumentos das duas correntes que disputam a consulta popular, são usadas sem-cerimônia, e jornais e revistas têm dificuldades para avaliar o que é fato e o que é manipulação. A Folha anunciou para este domingo um caderno especial sobre o referendo. Espero que me desminta.

Outro problema é o encolhimento das redações ao longo da crise financeira das empresas jornalísticas nos últimos anos. As equipes estão menores e, no caso da Folha, menos especializadas.

O foco de febre aftosa numa fazenda de Mato Grosso do Sul foi coberto à distância. O correspondente da Folha em Campo Grande, Hudson Corrêa, conhece bem o assunto, mas está em Brasília reforçando a equipe que acompanha a crise política. Sua ausência foi preenchida por uma free-lance que se saiu bem, mas até sexta-feira a cobertura era toda feita a partir de Campo Grande e de Brasília. O jornal não tinha ainda conseguido deslocar um jornalista para Eldorado, a 446 km de Campo Grande, onde ocorreu o foco.

O caso da seca na Amazônia é diferente. A repórter de Manaus, Kátia Brasil, já vinha acompanhando a falta de chuvas desde setembro e apontado que se avizinhava a maior estiagem dos últimos 30 anos na região. O jornal, no entanto, não deu tanta importância. Desde o dia 8 de outubro há registros quase diários da evolução da seca e de suas conseqüências, mas não há um investimento do jornal para entender o aparente paradoxo do fenômeno. A repórter deixou Manaus e se embrenhou nos municípios isolados mais atingidos, mas o aproveitamento do jornal foi frustrante. Na quinta-feira, ainda deu uma página com relatos da viagem, mas sem análises. E na sexta, mesmo os relatos já não tiveram destaque.

A descontinuidade também marcou a cobertura do projeto de transposição do rio São Francisco, outro assunto que poucos conseguem entender. Como se posicionar a favor ou contra a transposição diante de argumentos essencialmente técnicos?

Ao iniciar a greve de fome, no dia 26 de setembro, o bispo Luiz Flávio Cappio ressuscitou o assunto na imprensa. A Folha chegou a publicar um caderno especial, "Caminho das águas". O assunto, no entanto, continua controverso, como registraram os editoriais do jornal e as colunas que Luís Nassif vem publicando desde terça-feira num esforço de destrinchar o projeto. As reportagens sumiram e provavelmente só reaparecerão em nova crise. Mas não serão suficientes para esclarecer as dúvidas, apenas cumprirão a pauta.


Endereço da página: