Folha de S. Paulo


Efeitos do Katrina

Fui surpreendido, na edição de sexta-feira, dia 9, por uma "Nota da Redação" da Folha publicada no "Painel do Leitor" como resposta a um questionamento feito por Jair Faustino Rodrigues, de Guararema (SP). A carta cobrava do jornal, e com razão, uma resposta a comentários que fiz, na coluna de domingo passado, sob o título "O artifício especial", à cobertura jornalística do desastre que devastou parte do litoral norte-americano do Golfo do México.

"O que tem essa Folha a dizer a seus leitores sobre o "artifício" usado para induzir-nos a acreditar que as notícias sobre a destruição perpetrada pelo furacão Katrina no sul dos EUA foram enviadas daquele país pelo repórter Pedro Dias Leite quando, na verdade, não o foram, conforme denunciou o ombudsman Marcelo Beraba em 4/9?"

No artigo de domingo, considerei um erro grave do jornal ter assinado, durante dois dias, o noticiário das agências internacionais como se fossem do repórter enviado à região. "O erro", escrevi, "evidentemente, não é do repórter, que nem sequer tinha idéia do que se passava no Brasil, mas sim do jornal, que, com o artifício, quis fazer crer que estava recebendo informações exclusivas da região".
A "Nota da Redação" não admite que o jornal tenha errado: "Não houve erro ou omissão. Todas as reportagens comentadas pelo ombudsman foram creditadas ao enviado especial Pedro Dias Leite e às agências internacionais porque traziam informações coletadas pelo repórter da Folha e pelas agências".

A FONTE DAS NOTÍCIAS
Faço três observações a respeito dessa nota.

1 - A releitura das reportagens do dia 1º indica que as informações publicadas pelo jornal eram de agências ou de outras fontes. O repórter teve dificuldades normais para chegar à região devastada, para se locomover e para se comunicar com a Redação, como fica claro no "Diário do caos" que publicou no sábado, dia 3. Mesmo assim, o jornal publicou duas imensas reportagens com a sua assinatura. Em uma delas, havia uma breve passagem que poderia ter sido colhida em Mobile: "...um porta-voz da cidade de Biloxi declarou que o saldo de mortos será de centenas". No dia seguinte, a reportagem continha dois parágrafos sobre Biloxi (Mississippi). E nada mais.
Para mim, ficou evidente que o jornal quis passar a idéia de que foi ágil e de que já estava enviando informações da área, quando isso ainda não era possível por razões que não dependiam do jornal nem do repórter.
A prática de usar informações de agências com a assinatura de enviados especiais que mal desembarcaram nos seus destinos não é uma novidade. Mas, tal como acontece com a corrupção, o fato de ser antiga não significa que se justifica. Precisa ser erradicada. O jornal ganhará em credibilidade.
2 - Se o jornal está certo, como afirma na "Nota de Redação", e as informações publicadas eram realmente do repórter, fica para mim uma outra questão não respondida: por que, então, ele não enviou um relato pessoal das desgraças e ruínas que testemunhou, como acabou fazendo, e bem, no sábado e no domingo? O que se espera de um enviado especial é que transporte o leitor para o front, e não declarações de autoridades feitas a quilômetros de distância. Mas sei que o repórter não teve condições de enviar seu testemunho nos primeiros dias.

O SILÊNCIO DA FOLHA
3 - Por fim, o mais importante. A minha surpresa com a nota vem do fato de que o jornal teve três oportunidades para informar o ombudsman de que suas críticas não procediam.
Meu primeiro comentário foi feito no dia 1º de setembro, quando saiu a primeira reportagem assinada pelo repórter. Escrevi, então, na Crítica Interna: "Os relatos do enviado especial do jornal ("Prefeito diz que milhares podem ter morrido", na pág. A13, e "500 ônibus vão tirar 25 mil de Nova Orleans", na pág. A14) não têm uma linha sobre o que o repórter deve estar vendo e vivendo em uma das cidades mais atingidas pelo furacão, Mobile. Os dois textos são consolidações de informações colhidas pelo jornal nas agências internacionais e por telefone e, para isso, não era necessário enviar um jornalista para o front. É um desperdício".
Não recebi do jornal nenhuma contestação. É evidente que, se o jornal tivesse me informado que eu estava errado, avaliaria os seus argumentos e, mesmo que não concordasse com eles, os publicaria, como tenho feito sempre.

Na sexta-feira, dia 2, voltei a criticar o procedimento do jornal.
"A Folha volta a incorrer hoje no mesmo erro que ficou flagrante na edição de ontem: está evidente que o repórter enviado para a região devastada pelo Katrina não está conseguindo passar informações a respeito do que testemunha. Os textos assinados por ele na primeira página do jornal e internamente contêm apenas informações das agências de notícias. O texto interno ("Resgate em Nova Orleans tem tiros e caos", na capa de Mundo) tem apenas dois parágrafos com referências genéricas ao local onde está o correspondente. O jornal agiria com correção se atribuísse as notícias que consolidou nas edições de ontem e de hoje às agências e a outras fontes de que dispõe e contasse claramente o drama que o seu profissional deve estar vivendo para se locomover, sobreviver e contatar a Redação em São Paulo. Isso é notícia. Deve-se destacar o esforço do jornal de deslocar um profissional para a região -é o que os leitores esperam da Folha- e deve-se toda a solidariedade ao repórter, que deve estar trabalhando em condições precaríssimas semelhantes ou piores do que as de guerra. Ele não tem responsabilidade, nesse caso, sobre o uso indevido de sua assinatura em informações que não são suas. O problema é da editoria e da direção do jornal, e sugiro a revisão dessa política. Não há nenhuma vergonha em informar que o jornalista está tendo dificuldades de chegar aos locais arrasados e transmitir informações. Toda a imprensa está tendo as mesmas dificuldades".

Mais uma vez o jornal não se pronunciou.
Naquela mesma sexta-feira, procurei o secretário de Redação interino, Vaguinaldo Marinheiro, e o informei de que escreveria sobre o assunto no domingo. Pedi uma posição do jornal. Ele me respondeu que o jornal não comentaria as críticas.

Não sei a que atribuir o silêncio do jornal nas três ocasiões em que teve a oportunidade de se pronunciar. Ao não fazê-lo, e ao preferir o recurso de uma "Nota de Redação" publicada nove dias depois, levanta dúvidas sobre a pertinência das críticas do ombudsman.


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