Folha de S. Paulo


E se for mentira?

Folha, "Estado de S.Paulo" e "O Globo", os três jornais que disputam mercado e influência nacional, deram o mesmo destaque, na edição de quarta-feira, às acusações de um doleiro preso e condenado a 25 anos de prisão por evasão de divisas. As manchetes eram parecidas: "Doleiro diz que trabalhou para petistas" (Folha), "Doleiro diz ter provas de que PT mandou dinheiro ao exterior" ("Estado") e "Doleiro preso diz à CPI que atendia a dirigentes do PT" ("O Globo").

As acusações, que já no dia seguinte estavam perdidas no meio da avalanche de novas confissões e delações, atingiam o PT, um ministro de Estado, o presidente do Banco Central e personagens que já vinham arrolados na crise. O preso não apresentou provas, mas garantiu que as revelaria em troca de uma revisão de pena.

O episódio tem um detalhe importante. O doleiro foi ouvido por parlamentares da CPI dos Correios e por procuradores federais. A imprensa tomou conhecimento das acusações por intermédio dos deputados e senadores.
Alguns leitores escreveram com questionamentos que endosso. Os jornais não foram precipitados e, portanto, levianos, ao aceitarem as acusações sem provas de um condenado? Nesse caso, em que o preso foi investigado, indiciado, julgado e condenado, era possível o Ministério Público e a CPI avaliarem nos autos, antes de divulgar as acusações, se o doleiro tinha condições realmente de apresentar as provas que promete.

OS JORNAIS
Imagino que as direções das Redações devam ter discutido se deveriam publicar as acusações sem provas e se deveriam dá-las como manchetes. Encaminhei o questionamento para as direções dos três jornais e obtive respostas da Folha e de "O Globo".

Vaguinaldo Marinheiro, secretário de Redação de Edição interino, explicou que "foi muito difícil" a discussão interna na Folha. "A questão era esta: por que dar na manchete do jornal declarações de um criminoso que negocia com a CPI vantagens para revelar o que supostamente sabe? Os argumentos pró-manchete foram os seguintes: 1. Os membros da CPI, ao viajarem a São Paulo para ouvir Toninho da Barcelona, deram credibilidade ao acusador; 2. O depoimento, pelo aparato policial envolvido e pela atenção que despertou, foi o evento mais relevante do dia; 3. Os dados ainda obscuros do envolvimento do doleiro com petistas desde a CPI do Banestado fazem com que seus pronunciamentos sejam notícia; 4. Personagens da crise, como Duda Mendonça e Marcos Valério, relataram o uso de contas no exterior. As movimentações dessas contas tiveram a participação de doleiros. Toninho da Barcelona era considerado o maior doleiro do país, logo deve ter algo a informar sobre o caso".

Rodolfo Fernandes, diretor de Redação de "O Globo", acrescenta outro argumento: "É incômodo um processo em que doleiros e prostitutas viram personagens, acho que isso não é bom para o país, para a política e para a imprensa. Mas, quando 16 parlamentares, inclusive do próprio PT, voam de Brasília para ouvir um doleiro, em operação de enormes dimensões, e saem de lá dizendo que os fatos revelados por ele são consistentes, isso torna inevitável que a imprensa o divulgue. Acho que o caso do doleiro pode ter sido um excesso da CPI -mas, diante do retrospecto dos últimos três meses, será que daqui a alguns dias poderemos ainda ter essa impressão?".

AS RESPONSABILIDADES
O que leva os jornais a agir assim mesmo diante das dúvidas que admitem ter tido? Acho que são dois fatores principais. Um, histórico: o medo de ser "furado" pelos concorrentes, ou seja, de deixar de publicar uma informação que sabe que os outros têm. O outro, circunstancial. Houve, nesta cobertura, uma inversão no questionamento que deve presidir as decisões jornalísticas. A pergunta "e se tudo for mentira?" foi substituída por outra: "e se tudo for verdade?".

Este último ponto é importantíssimo para entender o comportamento da imprensa no escândalo do "mensalão". O que vem norteando a cobertura e, de uma certa forma, o próprio entendimento da população é a idéia de que, neste caso, tudo é possível.

Várias acusações sem provas foram confirmadas, as negativas e os desmentidos veementes foram desmascarados, e versões e versões vêm sendo refeitas diariamente. Isso faz com que qualquer nova acusação, por mais estranha que pareça, tenha crédito.

Isso não livra os jornais de responsabilidade. No caso da manchete de quarta-feira, os próprios diários perceberam que se excederam, mas nenhum foi capaz de admiti-lo francamente. Preferiram transferir o ônus para os parlamentares que divulgaram as acusações. Várias notas foram publicadas nos dias seguintes com esse teor.

O editorial "Norma", publicado pelo "Globo" na quinta-feira, revela a postura dos jornais de eximir-se de culpa: "As comissões parlamentares de inquérito devem investigar e buscar a melhor informação possível seja onde for. Mesmo junto a doleiros. Mas há cuidados óbvios a tomar com certos tipos de depoimentos. Há provas testemunhais de que nada valem diante da qualificação do depoente. Nesse caso, o julgamento de reputações só pode ser feito mediante a apresentação de provas documentais, e muito bem checadas".

Poderíamos dizer que a norma deveria valer para a imprensa. O fato de as acusações terem sido transmitidas por parlamentares não altera a responsabilidade dos jornais.


Endereço da página: