Folha de S. Paulo


A manchete oculta

O jornal publicou no domingo uma de suas reportagens mais importantes do ano. Os repórteres Josias de Souza e Andréa Michael viajaram para Marabá, no sul do Pará, e lá conseguiram colher os depoimentos de 36 ex-militares que haviam participado do combate à guerrilha implantada pelo PC do B na região do Araguaia entre 1972 e 1974.

Muito já se escreveu sobre aquele período. Agora mesmo acaba de sair um livro sobre o tema, "Operação Araguaia - Os Arquivos Secretos da Guerrilha" (Geração Editorial), da pesquisadora Taís Morais e do jornalista Eumano Silva. O livro é escrito com base em documentos secretos obtidos com militares. Mas, mesmo com toda a bibliografia disponível, ainda restam zonas de sombra sobre a história daquele período.

O mérito do trabalho dos dois jornalistas da Folha foi o de ter conseguido que um número expressivo de ex-militares admitisse, pela primeira vez, ter presenciado ou ter tido conhecimento de prática de tortura contra os prisioneiros comunistas.

São depoimentos inéditos e muito detalhados do que aconteceu na base do Exército em Xambioá (TO) e em instalações militares em Marabá. De acordo com a reportagem, "depoimentos de 36 testemunhas mostram que a tática do terror foi decisiva no Araguaia".

Além do ineditismo e do valor histórico, esses depoimentos devem ajudar os que buscam migalhas de informações na tentativa de localizar parentes desaparecidos na guerrilha.
Por essas razões, era de se supor que os depoimentos sobre a tortura fossem a manchete do jornal de domingo. Isso, no entanto, não ocorreu. O jornal preferiu chamar na sua capa para um aspecto secundário da reportagem: "Militar do Araguaia quer indenização".

É verdade que a reportagem também informa sobre essa reivindicação. Mas esse não é o ponto principal, tanto que, internamente, o jornal destaca a tortura. Reproduzo os títulos das páginas A4 e A8: "Ex-militares relatam tortura do Exército contra guerrilha" e "Enfermeiro reanimava presos sob tortura". Na página A6, o jornal trata do pedido de indenização: "Como os pracinhas, ex-soldados querem receber indenização".

Não entendi a lógica que orientou o jornal ao subestimar as denúncias inéditas de tortura na sua capa de domingo. Encaminhei um pedido de explicação, mas recebi a resposta de que o jornal não o comentaria.
O assunto teve grande repercussão nos dias que se seguiram, mas o jornal também não lhe deu o devido destaque. Na segunda, ainda publicou um novo texto dos jornalistas enviados ao Pará ("Guia do Exército, camponês quer indenização") e uma repercussão centrada no pedido de indenização, mas nenhuma nas revelações de tortura.

Na terça, o assunto já tinha virado uma pequena nota de pé de página ("ONG critica pedido de indenização de ex-militares") e apenas na quarta-feira houve uma repercussão sobre a tortura, "Deputados querem ouvir soldados que viram tortura no Araguaia". Na quinta, quando escrevo esta coluna, o assunto já não tinha espaço no jornal, exceto no "Painel do Leitor".

Não é a primeira vez nem será a última que um jornal considera mais relevante um fato passageiro (o pedido de indenização de ex-militares) do que um documento histórico (os depoimentos que confirmam a tortura).


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