Folha de S. Paulo


Democracia e cidade

Apesar da nostalgia de alguns pelos anos de chumbo, o maior desafio da democracia brasileira não é o risco de um golpe militar. É criar instrumentos para ampliar a transparência e a participação das pessoas nas decisões públicas.

Já não estamos entre os regimes democrático e totalitário, mas diante da democracia que podemos e desejamos construir.

O filósofo Jacques Rancière, autor do livro "Ódio à Democracia", escreveu que a principal causa do esvaziamento da democracia em vários países é a aliança entre a elite política e o poder econômico.

No Brasil, essa união começa com o financiamento empresarial de campanhas eleitorais milionárias e resulta na submissão da gestão pública aos desejos de seus patrocinadores. Não se trata apenas de privatizar um bem estatal, mas de repassar a gestão pública àqueles que mantêm negócios com o Estado.

Uma democracia realmente participativa, em que as pessoas possam decidir sobre os rumos de sua cidade é incompatível com este modelo porque a soberania popular foi confiscada.

Os municípios são centrais para esse debate porque é no cotidiano da cidade-negócio que as pessoas sentem essas contradições. É o que ocorre com o transporte rodoviário na capital carioca.

O Ministério Público do Estado e o Tribunal de Contas do Município questionam constantemente o aumento do preço das passagens, reajustado ano após ano sem qualquer critério técnico, mas nada é feito pela prefeitura.

Sem a divulgação das informações financeiras das empresas responsáveis pelo serviço, não é possível que haja fiscalização e controle social.

O Minha Casa, Minha Vida é outro exemplo de política pública leiloada. Não é um projeto habitacional de fato, mas um instrumento para fortalecer o setor da construção civil, pois não basta produzir moradia, é preciso também garantir o direito à cidade.

O que não ocorre porque, como a escolha dos terrenos cabe às construtoras, os imóveis costumam ser erguidos em locais isolados, onde a terra é mais barata. Milhares de pessoas são abandonadas nas periferias, onde não há acesso adequado a transporte, escolas, postos de saúde e opções de lazer e trabalho. As famílias ganham uma casa, mas perdem a cidade.

Rancière escreveu que a democracia não é uma questão de instituições, mas de atividade e imaginação. Está em permanente construção. Precisamos fazer com que os protagonistas sejam as pessoas, não os sócios dos governos. No lugar da cidade-negócio, queremos a cidade de direitos. Em vez da soberania confiscada, a soberania cidadã. A resposta para a crise da democracia é mais democracia.


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