Folha de S. Paulo


'Banquetaço' dá comida de verdade contra farinata

No horário de almoço de quinta-feira (16), uma mesa farta, colorida e apetitosa foi montada na frente do Theatro Municipal de São Paulo por volta de meio-dia. Serviu 2.000 refeições e 2.200 picolés a todos que passaram por ali –os que foram especialmente ao ato, os frequentadores e a população sem teto que mora ou circula na região.

Cuscuz numa trouxinha de folha de bananeira, penne com molho de pancs (plantas alimentícias não convencionais), bolinho de batata com aparas de presunto, sucos e sorvetes de sabores especiais, como o de cambuci, foram alguns dos dez pratos. Entre as dez duplas de chefs montadas para compor o cardápio estavam nomes como Bel Coelho, Neka Mena Barreto, Ana Soares e Mara Salles, entre tantos outros.

Os ingredientes vieram de uma coleta eficiente. Cultivadores de orgânicos de vários pontos de São Paulo, hortelões de hortas comunitárias, agricultores da agroecologia, movimentos como o Disco Xepa, responsáveis pela horta de pancs da Faculdade de Medicina da USP, doações de restaurantes, entrepostos. Um galpão no centro, nas proximidades da rua Paula Souza, foi cedido por um empresário e serviu de centro logístico para a preparação dos pratos.

O Banquetaço foi um ato político e de inclusão. Pela comida. Político para sensibilizar para o problema da alimentação das populações em situação de risco e em idade escolar. Contra a ideia de implantar ultraprocessados como o granulado seco, a farinata, proposto pela Prefeitura de São Paulo, e a favor de produtos da agricultura orgânica, sustentável e justa. Inclusivo e solidário com as pessoas vulneráveis, que dependem de fornecimento de alimentação pública.

"A qualidade da alimentação popular é a bola da vez", diz o sociólogo Carlos Alberto Dória, um dos organizadores do Banquetaço. "Sentimos que havia uma saturação de críticas verbais à farinata. Vários aspectos foram levantados. Conversando com pessoas diversas ligadas à alimentação, resolvemos que era preciso fazer algo prático, começar outro caminho", conta ele.

"Foram mais de 40 pessoas, sem nenhum mecanismo de direção, hieraquia, uma construção de consenso sobre o que fazer, tudo pelo What'sApp, uma organização anárquica, mas muito eficiente", disse Dória, após o evento, satisfeito com os resultados do Banquetaço.

Em texto publicado depois das 13h desta mesma quinta, a Prefeitura de São Paulo anunciou um programa que "amplia a compra de produtos da agricultura familiar e de orgânicos para a merenda escolar da rede municipal de ensino", lança um aplicativo e "a implantação de mais 200 hortas pedagógicas em escolas".

O anúncio também afirma que pela primeira vez a rede pública vai contar com produtos orgânicos no cardápio, o que não é verdade. Mesmo assim, parece um avanço. Segundo Dória, além do anúncio desse programa, durante o Banquetaço "a prefeitura deu sinais de que quer conversar com a gente".

MANIFESTO

A mobilização pelas redes para o Banquetaço começou há cerca de uma semana. Em texto publicado no "Le Monde Diplomatique" no último dia 13, Dória dizia que o evento seria "um ato contra a ideia infeliz da ração humana. Uma reivindicação pública para exigir a revogação da lei nº 16.704 de 2017, que permite ao poder público celebrar contratos e convênios com entidades produtoras/distribuidoras de 'farinata' e derivados processados e ultraprocessados".

"A reação a essa proposta, considerada mirabolante, degradante e humilhante, foi a rápida mobilização de centenas de pessoas de várias entidades", para "evidenciar que existem alternativas saudáveis, orgânicas e de baixo custo para a alimentação popular".

O texto aponta também que apesar de o município contar com um plano de segurança alimentar, uma lei que prevê orgânicos na alimentação escolar e um programa de agricultura urbana, normativas que são "indutoras da abundância e da dignidade na cidade", a prefeitura "tem descuidado da implementação das medidas ali preconizadas", tendo cortado "92% do orçamento previsto para projetos de abastecimento e segurança alimentar e nutricional na cidade para o ano que vem".

Para "mostrar, em espaço público, como se pode produzir boa alimentação a partir de produtos da agricultura orgânica, sustentável e justa", foi chamado o Banquetaço.

No dia 15, com mais de 50 assinaturas, foi publicado o Manifesto Republicano dos Cozinheiros e Profissionais da Alimentação, repudiando a Farinata para merenda e alimentação popular. Assinaturas de Alex Atala, Ana Luiza Trajano, Bela Gil, Checho Gonzales, Helena Rizzo, Marilia Zylbersztajn, Nina Horta e Paola Carosella figuram ali.

Segundo o texto, a ideia "contraria todos os conhecimentos modernos sobre a nutrição e alimentação, que orientaram a formulação de políticas públicas baseadas em boas práticas, e que ligam a agricultura ao prato de comida servido pelo poder público".

O manifesto conclama "toda a população, e em especial aqueles trabalhadores da cadeia alimentar, a cerrar fileiras em torno da alimentação popular saudável, natural, orgânica e socialmente justa, como o único caminho de conquista do bem comum em matéria alimentar".


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