Folha de S. Paulo


Lixo: O manifesto verde do papa e ideias para 'cuidar da casa comum'

"A Terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo". Palavra de papa.

O papa Francisco ficou mais pop e explicitamente verde com a publicação, na quinta (18), da nova encíclica "Louvado Seja", um chamado ao "cuidado da nossa casa comum", com alerta sobre a mudança climática, em defesa da conservação do meio ambiente e da economia circular.

Estruturada em seis capítulos, a encíclica faz uma análise dos vários aspectos do esgotamento do modelo de desenvolvimento atual e expõe as bases de uma ecologia integral: ambiental, econômica e social.

O documento responsabiliza a cultura do lucro e do consumo pelas desigualdades planetárias, indica que convém "evitar a concepção mágica do mercado" para resolver os problemas econômicos, reitera o valor social da propriedade e propõe linhas de ação individuais e coletivas para fazer uma revolução cultural na direção de sociedades mais sustentáveis. O papa alerta também para o perigo de uma guerra pela água num futuro próximo.

"O papa denunciou a fraca reação política internacional e os interesses econômicos na hora de lidar com a defesa do meio ambiente", observou o diretor-executivo do Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), Achim Steiner, ao comentar e apoiar a encíclica.

Segue aqui minha seleção de trechos sobre poluição, resíduos, água, reciclagem, consumo e a vida nas cidades:

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"A exposição aos poluentes atmosféricos produz uma vasta gama de efeitos sobre a saúde, particularmente dos mais pobres, e provoca milhões de mortes prematuras."

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"Devemos considerar também a poluição produzida pelos resíduos, incluindo os perigosos presentes em variados ambientes. Produzem-se anualmente centenas de milhões de toneladas de resíduos, muitos deles não biodegradáveis: resíduos domésticos e comerciais, detritos de demolições, resíduos clínicos, electrônicos e industriais, resíduos altamente tóxicos e radioativos. A Terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo."

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"Estes problemas estão intimamente ligados à cultura do descarte, que afeta tanto os seres humanos excluídos como as coisas que se convertem rapidamente em lixo. Note-se, por exemplo, como a maior parte do papel produzido se desperdiça sem ser reciclado. Custa-nos a reconhecer que o funcionamento dos ecossistemas naturais é exemplar: as plantas sintetizam substâncias nutritivas que alimentam os herbívoros; estes, por sua vez, alimentam os carnívoros que fornecem significativas quantidades de resíduos orgânicos, que dão origem a uma nova geração de vegetais. Ao contrário, o sistema industrial, no final do ciclo de produção e consumo, não desenvolveu a capacidade de absorver e reutilizar resíduos e dejetos. Ainda não se conseguiu adotar um modelo circular de produção que assegure recursos para todos e para as gerações futuras e que exige limitar, o mais possível, o uso dos recursos não-renováveis, moderando o seu consumo, maximizando a eficiência no seu aproveitamento, reutilizando e reciclando-os."

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"Outros indicadores da situação atual têm a ver com o esgotamento dos recursos naturais. É bem conhecida a impossibilidade de sustentar o nível atual de consumo dos países mais desenvolvidos e dos setores mais ricos da sociedade, onde o hábito de desperdiçar e jogar fora atinge níveis inauditos."

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"A água potável e limpa constitui uma questão de primordial importância, porque é indispensável para a vida humana e para sustentar os ecossistemas terrestres e aquáticos. As fontes de água doce fornecem os setores sanitários, agropecuários e industriais. A disponibilidade de água manteve-se relativamente constante durante muito tempo, mas agora, em muitos lugares, a procura excede a oferta sustentável, com graves consequências a curto e longo prazo. Grandes cidades, que dependem de importantes reservas hídricas, sofrem períodos de carência do recurso, que, nos momentos críticos, nem sempre se administra com uma gestão adequada e com imparcialidade. A pobreza da água pública verifica-se especialmente na África, onde grandes setores da população não têm acesso à água potável segura, ou sofrem secas que tornam difícil a produção de alimento."

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"Um problema particularmente sério é o da qualidade da água disponível para os pobres, que diariamente ceifa muitas vidas. Entre os pobres, são frequentes as doenças relacionadas com a água, incluindo as causadas por microorganismos e substâncias químicas. A diarreia e a cólera, devidas a serviços de higiene e reservas de água inadequados, constituem um fator significativo de sofrimento e mortalidade infantil. Em muitos lugares, os lençóis freáticos estão ameaçados pela poluição produzida por algumas atividades extrativas, agrícolas e industriais, sobretudo em países desprovidos de regulamentação e controles suficientes. Não pensamos apenas nas descargas provenientes das fábricas; os detergentes e produtos químicos que a população utiliza em muitas partes do mundo continuam a ser derramados em rios, lagos e mares."

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"Enquanto a qualidade da água disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para se privatizar este recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado. Na realidade, o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos."

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"Passando aos mares tropicais e subtropicais, encontramos os recifes de coral, que equivalem às grandes florestas da terra firme, porque abrigam cerca de um milhão de espécies, incluindo peixes, caranguejos, moluscos, esponjas, algas e outras. Hoje, muitos dos recifes de coral no mundo já são estéreis ou encontram-se num estado contínuo de declínio () Este fenômeno deve-se, em grande parte, à poluição que chega ao mar resultante do desmatamento, das monoculturas agrícolas, das descargas industriais e de métodos de pesca destrutivos, nomeadamente os que utilizam cianeto e dinamite."

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"A cultura ecológica não se pode reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais para os problemas que vão surgindo à volta da degradação ambiental, do esgotamento das reservas naturais e da poluição. Deveria ser um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático."

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"Nas cidades, a qualidade de vida está largamente relacionada com os transportes, que muitas vezes são causa de grandes tribulações para os habitantes. Nelas, circulam muitos carros utilizados por uma ou duas pessoas, pelo que o tráfico torna-se intenso, eleva-se o nível de poluição, consomem-se enormes quantidades de energia não-renovável e torna-se necessário a construção de mais estradas e parques de estacionamento que prejudicam o tecido urbano. Muitos especialistas estão de acordo sobre a necessidade de dar prioridade ao transporte público. Mas é difícil que algumas medidas consideradas necessárias sejam pacificamente acolhidas pela sociedade, sem uma melhoria substancial do referido transporte, que, em muitas cidades, comporta um tratamento indigno das pessoas devido à superlotação, ao desconforto, ou à reduzida frequência dos serviços e à insegurança."

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"São necessários padrões reguladores globais que imponham obrigações e impeçam ações inaceitáveis, como o fato de países poderosos descarregarem, sobre outros países, resíduos e indústrias altamente poluentes."

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"O problema crescente dos resíduos marinhos e da proteção das áreas marinhas para além das fronteiras nacionais continua a representar um desafio especial. Em definitivo, precisamos de um acordo sobre os regimes de governança para toda a gama dos chamados bens comuns globais."

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"Mais uma vez repito que convém evitar uma concepção mágica do mercado, que tende a pensar que os problemas se resolvem apenas com o crescimento dos lucros das empresas ou dos indivíduos. Será realista esperar que quem está obcecado com a maximização dos lucros se detenha a considerar os efeitos ambientais que deixará às próximas gerações? Dentro do esquema do ganho não há lugar para pensar nos ritmos da natureza, nos seus tempos de degradação e regeneração, e na complexidade dos ecossistemas que podem ser gravemente alterados pela intervenção humana."

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"Um percurso de desenvolvimento produtivo mais criativo e melhor orientado poderia corrigir a disparidade entre o excessivo investimento tecnológico no consumo e o escasso investimento para resolver os problemas urgentes da humanidade; poderia gerar formas inteligentes e rentáveis de reutilização, recuperação funcional e reciclagem; poderia melhorar a eficiência energética das cidades."

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"Chegou a hora de aceitar um certo decréscimo do consumo nalgumas partes do mundo, fornecendo recursos para que se possa crescer de forma saudável noutras partes. "

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"Um desenvolvimento tecnológico e econômico que não deixa um mundo melhor e uma qualidade de vida integralmente superior não se pode considerar progresso. Além disso, muitas vezes a qualidade real de vida das pessoas diminui –pela deterioração do ambiente, a baixa qualidade dos produtos alimentares ou o esgotamento de alguns recursos– no contexto de um crescimento da economia. Então, muitas vezes, o discurso do crescimento sustentável torna-se um diversivo e um meio de justificação que absorve valores do discurso ecologista dentro da lógica da finança e da tecnocracia, e a responsabilidade social e ambiental das empresas reduz-se, na maior parte dos casos, a uma série de ações de publicidade e imagem."

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"Uma mudança nos estilos de vida poderia chegar a exercer uma pressão salutar sobre quantos detêm o poder político, econômico e social. Verifica-se isto quando os movimentos de consumidores conseguem que se deixe de adquirir determinados produtos e assim se tornam eficazes na mudança do comportamento das empresas, forçando-as a reconsiderar o impacto ambiental e os modelos de produção. É um fato que, quando os hábitos da sociedade afetam os ganhos das empresas, estas vêem-se pressionadas a mudar a produção. Isto lembra-nos a responsabilidade social dos consumidores."

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"A educação na responsabilidade ambiental pode incentivar vários comportamentos que têm incidência direta e importante no cuidado do meio ambiente, tais como evitar o uso de plástico e papel, reduzir o consumo de água, diferenciar o lixo, cozinhar apenas aquilo que razoavelmente se poderá comer, tratar com desvelo os outros seres vivos, servir-se dos transportes públicos ou partilhar o mesmo veículo com várias pessoas, plantar árvores, apagar as luzes desnecessárias Tudo isto faz parte duma criatividade generosa e dignificante, que põe a descoberto o melhor do ser humano. Voltar –com base em motivações profundas– a utilizar algo em vez de o desperdiçar rapidamente pode ser um ato de amor que exprime a nossa dignidade."


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