Folha de S. Paulo


Peça do russo Sorókin iguala literatura a uma forma de alucinógeno

Se muitos romances de Dostoiévski podem ser lidos como dramas teatrais, a peça "Dostoiévski-Trip", de Vladímir Sorókin, pode perfeitamente ser lida como pequena novela.

O escritor russo, que esteve na Flip de 2014, explora uma das principais virtudes da ficção dostoievskiana: seu caráter dialógico, a autonomia singular que o autor atribui a personagens de romances como "O Idiota" e "Os Demônios" e que levou seu maior intérprete, Bakhtin, a qualificá-los como polifônicos.

No caso de Sorókin, a situação dialógica fica evidente pela estrutura, na forma de diálogos teatrais. Já sua polifonia é mais alucinada que a do autor de "Crime e Castigo", pois as personagens de "Dostoiévski-Trip" (como sugere o título) estão numa viagem lisérgica.

Em cena, cinco personagens masculinos (designados apenas como Homem 1, Homem 2 e assim por diante) e dois femininos (Mulher 1 e 2). Eles estão num "lugar com mobiliário modesto" e falam de suas experiências com drogas, enquanto esperam pela chegada de um traficante.

Ocorre que o alucinógeno, aqui, não deriva da cannabis ou dos opiáceos, mas atende pelo nome de literatura. Eles trocam impressões sobre a fissura Céline, a droga Kafka, o coquetel Cervantes com Huxley ou as caríssimas doses de Nabókov, com a qual "a gente pode comprar umas quatro de Robbe-Grillet e umas dezoito de Nathalie Sarraute".

Nenhum barato, porém, se compara com o psicotrópico que o Vendedor vem lhes oferecer: Dostoiévski. O grupo entra em transe e passa a encarnar personagens de "O Idiota", na antológica cena da festa em que a mundana
Nastácia Filíppovna escarnece de seus pretendentes -o angelical príncipe Mychkin, o devasso Rogójin e o medíocre Gânia, entre outras personagens.

A peça reproduz os paroxismos das criaturas de Dostoiévski, sua oscilação entre o sublime e o abjeto, até que os junkies de Sorókin voltam da "bad trip" e passam a narrar seus próprios episódios de crueldade e perversão.

A cômica paródia inicial se converte, assim, em purgação dos impulsos mais monstruosos -numa catarse letal que busca restituir à literatura (Dostoiévski à frente) seu poder de abrir as portas da percepção para a grandeza trágica de nossas minúsculas vidas de marionetes.

CONEXÕES

LIVROS
DOSTOIÉVSKI-TRIP **
AUTOR: Vladímir Sorókin
TRADUÇÃO: Arlete Cavaliere
EDITORA: 34 (104 págs., R$ 32)

LIVROS
O IDIOTA **
A intensidade metafísica sem par das personagens desse romance de 1869 é a base da peça de Sorókin.
AUTOR: Fiódor Dostoiévski
TRADUÇÃO: Paulo Bezerra
EDITORA: 34 (2010, 688 págs., R$ 84)

PROBLEMAS DA POÉTICA DE DOSTOIÉVSKI **
Ensaio em que o teórico russo identifica o modo como as vozes das personagens de Dostoiévski soam independente da voz de seu autor.
AUTOR: Mikhail Bakhtin
TRADUÇÃO: Paulo Bezerra
EDITORA: Forense Universitária (2010, 366 págs., R$ 76)


Endereço da página: