Folha de S. Paulo


Os escravos contemporâneos criados pela tecnologia

Em 1769, uma novidade impressionou a Europa. O "Turco Mecânico", autômato inventado pelo barão Wolfgang von Kempelen, jogava xadrez como poucos. Em vários desafios públicos, aquela que parecia ser uma forma de inteligência artificial derrotou vários enxadristas e celebridades da época, entre elas Napoleão Bonaparte. O mistério só foi solucionado décadas mais tarde, quando se descobriu que a máquina escondia em seu interior um homenzinho com grande talento, que operava as peças de xadrez por meio de alavancas.

A brincadeira de mau gosto deveria ter sido esquecida com o tempo, lembrada somente por historiadores como uma das formas de selvageria praticadas em uma época que a escravidão era considerada legítima. Mas os grandes magnatas do Vale do Silício não parecem estar preocupados com essas delicadezas de direitos humanos. Em 2005 a Amazon tornou público seu serviço de "inteligência artificial artificial", em que trabalhadores do mundo todo podem realizar pequenas tarefas que simulem algoritmos. E deu a ele o mesmo nome do boneco turco, deixando transparecer que sua preocupação com os direitos de seus trabalhadores não deveria ser muito diferente da que se tinha com o pobre coitado espremido em um pequeno armário.

Hoje apenas o serviço da Amazon agrega mais de 100 mil "colaboradores", que não precisam de maior qualificação além de ter um endereço de e-mail válido. Suas tarefas podem ser acessadas de qualquer browser, não levam mais do que uns cinco minutos para serem completadas e são pagas assim que forem aprovadas. Como o "Mechanical Turk", outros mercados de computação humana com nomes de start-up brotaram recentemente. CastingWords, Samasource, ChaCha, LiveOps e tantos outros tentam criar seus fantasmas na máquina enquanto ela não se mostra capaz de fazer aquilo que é banal para o cérebro humano.

É inegável que a capacidade computacional cresceu exponencialmente nos últimos anos. Mas, apesar de serem imbatíveis em calcular, armazenar, comparar e recuperar grandes volumes de dados, computadores ainda são precários para realizar funções tão básicas como o reconhecimento de objetos em fotografias.

Essa forma híbrida de computação hoje está visível em vários lugares. Em qualquer busca por informações de contato de um estabelecimento comercial, por exemplo, é bem provável que o endereço, telefone, horário de funcionamento e website apareçam em destaque, organizados para fácil identificação. Boa parte desses dados foi coletada cuidadosamente por centenas de trabalhadores, que acessaram os sites, identificaram dados registrados das formas mais aleatórias e os deixaram em ordem.

Nos grandes serviços de comércio eletrônico, a busca por um item especial meio a centenas de milhares de objetos é precisa porque a base de dados foi limpa, classificada e arrumada pelo mesmo tipo de mãos e cérebros invisíveis. O usuário, que procura na máquina uma resposta infalível, muitas vezes a recebe de outro usuário, travestido de máquina. É o simulacro do simulacro do simulacro.

Os computadores artificiais fazem de tudo: moderam conteúdo de comentários, transcrevem áudio e vídeo, promovem determinadas marcas, curtem e compartilham conteúdo, votam, coletam e classificam dados, identificam pessoas e objetos em fotografias, analisam o sentimento de consumidores com relação a marcas, censuram imagens pornográficas, interpretam caligrafias, removem duplicatas, respondem a perguntas por aplicativos de mensagem instantânea, identificam preferências por marcas e modelos e até respondem a pesquisas de campo de estudos acadêmicos.

Ainda levará umas três décadas para que computadores possam superar a capacidade humana nessas tarefas que, apesar de aparentemente simples, dependem de uma capacidade de reconhecimento de padrões e uma experiência cultural muito grande. Até lá, mercenários intelectuais poderão vender sua capacidade cerebral para que os serviços que sustentam a Internet funcionem adequadamente.

Em uma pantomima de inteligência de máquina, gente real dá a impressão que um computador é tão inteligente a ponto de ser capaz de simular o comportamento de gente real. O sistema funciona tão bem que alguns aplicativos de "namoradas virtuais" asiáticos optaram por substituir os algoritmos de conversa automática por gente que realizasse a mesma função.

A ideia da Inteligência artificial artificial é quase tão brilhante quanto é perversa. O ciborgue virtual, misto de sistema operacional e rede social, conecta empresas e trabalhadores para a realização de microtarefas, a preços que costumam variar entre US$ 0,01 e US$ 5. Descontada a taxa de administração, colaboradores que possuam contas bancárias nos EUA recebem depósitos, enquanto o resto é pago em vale-presentes.

As demandas, quebradas pelo sistema em microtarefas, são parecidas com as antigas linhas de montagens de fábricas no início da Revolução Industrial. A remuneração, os direitos dos operários e o tamanho das jornadas de trabalho não são tão diferentes. É raro quem consiga, mesmo com bastante dedicação, receber mais do que US$ 2 por hora. É mais do que um salário mínimo, mas descontados os custos de rede, equipamento e energia, dá mais ou menos na mesma.

Só que não. Sem registro nem benefícios, o pobre operário é largado à sua própria sorte. Como não há controle, transparência ou estabilidade, é muito difícil evitar o trabalho infantil ou jornadas excessivas. Como acontece com os motoristas do Uber, cada profissional é considerado autônomo e responsável por seu próprio recolhimento de tributos. Para a empresa que o contrata, no entanto, o risco é praticamente zero. Não são raros os casos de calotes e fraudes promovidos por clientes inescrupulosos que rejeitam o trabalho feito e se recusam a pagá-lo, sem grandes justificativas.

O mercado de microtrabalho é uma indústria grande e crescente. Estima-se que movimente quase US$ 500 milhões anuais, o que é uma ninharia quando comparado ao "outsourcing" de trabalhos para países pobres, que movimenta cerca de mil vezes essa quantia.

Entre seus clientes estão várias empresas pequenas e start-ups, mas o dinheiro de verdade é movimentado por enormes multinacionais. Suas tarefas, anonimizadas e fatiadas, dificilmente podem ser identificadas. Mesmo que não fossem tão baratas, a economia com tributos, despesas de treinamento, vales e cuidados médicos já tornaria o esforço bem lucrativo.

Em um papel que mistura "Matrix" com "Tempos Modernos", as baterias humanas tendem a se tornar cada vez mais comuns. Camufladas sob o gabinete da máquina, suas identidades desaparecem. Praticamente ninguém tem acesso às demandas e sofrimentos desses pobres coitados, espalhados pelos grotões do mundo, sentados à frente de seus computadores, presos a um trabalho hipnótico, na tentativa de garantir a sobrevivência da família com a dedicação de jogadores de videogame.

Invisíveis, as linhas de montagem virtuais podem ser facilmente ignoradas. E com elas, boa parte das conquistas sociais obtidas. Com medo de perder seu magro salário e incapaz de saber quantos outros enfrentam a mesma situação, o escravo contemporâneo não protesta. Ele sabe que a estabilidade de emprego é coisa do passado, e luta para que a situação não piore, colaborando com a ilusão de que a internet, gratuita, gera riquezas por mágica.


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