Folha de S. Paulo


Hatebook

São fatos inegáveis que a intolerância vem crescendo nos últimos meses e que sua principal arena são as redes sociais. Justo elas, que ao surgir foram consideradas um avanço democrático.

Plataformas se defendem alegando bloquear conteúdos ofensivos a religiões, etnias, nacionalidades, gêneros, doenças ou preferências. O argumento, genérico, tem efeito discutível. Ele pode até funcionar em casos tão radicais que não conseguem ser interpretados como humor, paródia, letra de música ou outras formas socialmente aceitas de preconceito, mas dificilmente acabará com a polarização.

Fóruns digitais, a princípio, são tão responsáveis pelas opiniões de seus integrantes quanto um dono de bar o seria pelo teor das conversas de seus fregueses. Como donos de bares, seus administradores podem até convidar os mais exaltados a se retirar, tolerando o resto.

O problema é que na rede a conversa informal, que deveria ser volátil e restrita a pequenos grupos, é registrada, amplificada e redistribuída. Rumores e afirmações fora de contexto são levados a sério e opiniões contrárias tendem a ser suprimidas e filtradas.

Ativistas de todos os lados gostam de acusar a manipulação dos fatos por uma mídia "vendida", mas parecem se esquecer de que desde o surgimento da Internet as mídias de massa perderam boa parte de seu alcance e influência. Hoje boa parte da informação consumida vem de redes sociais, que não costumam ter qualquer compromisso com a neutralidade, com a verificação de origem dos fatos ou mesmo com sua veracidade.

A distorção da notícia, que na grande mídia tende a ser limitada e consiste, em sua maioria, na omissão de fatos e opiniões, é nas redes sociais abertamente intencional, destacada e distribuída.

Se os grandes serviços de comunidades online estivessem realmente empenhados em garantir a multiplicidade de visões de mundo, seus algoritmos buscariam apresentar o diferente, não o semelhante. Mas isso implicaria em uma total inversão do que se conhece hoje por rede social.

Facebook e Google não são serviços noticiosos nem educativos. Acima de tudo, não são gratuitos. Seu faturamento vem, como na TV, de anúncios. Para se sustentar, eles dependem de audiência e precisam garantir a permanência de seus públicos. Sua fórmula para conseguir tanta gente conectada por tanto tempo é compilar e analisar preferências individuais para filtrar a Internet em uma narrativa previsível e uniforme.

O resultado é coerente, agradável e desprovido de conflitos como uma sala de estar. Mas para garantir tal assepsia, a realidade é comprometida e retalhada, deixando cada usuário isolado em sua própria bolha cultural e ideológica. Quanto mais a rede "social" é usada, mais seus usuários ficam presos a conteúdos que os isolam e reforçam seus pontos de vista, tornando-os ironicamente mais antissociais.

Essa "ciberbalcanização", que já seria ruim por seu efeito alienante, é ainda mais grave quando se considera a tendência humana a buscar, interpretar, favorecer e recordar informações que confirmem suas crenças ou hipóteses, atribuindo valor consideravelmente menor a possibilidades alternativas. Mesmo que a informação fosse neutra, sua interpretação seria enviesada.

Quando ela é tendenciosa, é natural que gere leituras radicais.

O apoio da comunidade torna o problema ainda mais grave. Ele costuma bloquear qualquer ideia, tema ou informação que conteste o estado das coisas. Agindo como câmara de eco, ele contribui para o sentimento excessivo de autoconfiança, típico de torcidas organizadas e procissões de fanáticos, agarrando-se a crenças mesmo em face de evidências contrárias.

Quando o grupo é coeso e barulhento, discordar é tarefa para gente muito segura e corajosa. Ou insana.

O grande problema da "voz do povo" é estar sujeita às dinâmicas de comportamento coletivo. Poderosas, essas dinâmicas foram estudadas por pesadores do calibre de Kierkegaard, Nietzsche, Freud e Jung. Em comum, todos afirmam que elas representam forças irracionais e poderosas.

Universais, alguns de seus comportamentos são estudados até em interações sociais não-humanas, como em colônias de insetos e algumas áreas da inteligência artificial.

A ideia de um comportamento de multidões, proposta pelo psicólogo social Gustave Le Bon no final do século 19, continua válida em uma civilização com mais acesso à informação do que havia há um século e meio.

A rede mundial de conteúdo não impediu que o mundo continuasse dividido em categorias tribais, em que "nós" parecemos estar em guerra contínua contra "eles". Em alguns momentos ela parece reforçar essa divisão.

Ao doutrinar cada usuário com suas próprias ideias, o Facebook cria uma ditadura ideológica invisível. Baseada em autopropaganda, ela explora vieses e heurísticas, reforça preconceitos e estimula a criação de associações ilusórias entre os acontecimentos.

Sob sua influência, até fatos claramente neutros ou contrários às crenças acabam sendo interpretados para favorecê-las. Qualquer comentário que oponha-se às ideias preestabelecidas tem a sua importância diminuída e seu autor desqualificado.

A polarização tende, infelizmente, a crescer. O animal social tem um desejo natural de pertencer e ser aceito. Mesmo quem não esteja totalmente comprometido com determinada causa pode acabar, por comodidade, a segui-la. Principalmente se não tiver segurança ou conhecimento suficiente para opor-se a ela. Como se diz na indústria, ninguém é demitido por comprar IBM. Ou Microsoft. Ou um iPhone.

Muitas atitudes vergonhosas são mais o resultado de reações automáticas do que de intenções escusas. Até que surja o momento que as redes promovam a diversidade, é fundamental buscar ativamente a maior diversidade de pontos de vista possível e levar, sempre que possível, boa parte delas em conta.

Mais do que nunca é fundamental fazer a lição de casa antes de tomar uma posição. Qualquer posição.


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