Folha de S. Paulo


Amem-se ou morram

No dia primeiro de setembro de 1939, o poeta anglo-americano W. H. Auden escreveu um de seus textos mais conhecidos, lamentando a Guerra Mundial que se apresentava. O poema termina dizendo que ninguém existia por conta própria. E que era preciso amar-nos uns aos outros ou então morreríamos todos.

É difícil pensar nisso quando um atentado de violência cega transforma Paris na Cidade das Trevas e demanda dos governantes franceses uma reação à altura. Não é difícil prever um futuro de violência crescente, em que ódios recíprocos não se satisfaçam com menos do que a total eliminação do inimigo.

Já vimos essa história em outros países. Seja no Oriente Médio, no Paquistão ou em Ruanda, a escalada do ódio nunca termina e tende a deixar vítimas e culpados por todos os lados. Quando a Argentina resolveu dar um basta aos julgamentos militares ou a Alemanha resolveu descer a mão pesada em qualquer sentimento totalitário, muitos consideraram a reação exagerada. É difícil imaginar em que condições esses países estariam se a vingança travestida de justiça seguisse o seu curso.

É curioso pensar que, justamente à medida que o mundo fica mais conectado e transparente, o isolamento e o medo da diferença se tornem tão expressivos. Nas grandes metrópoles de hoje, estejam no Brasil ou na Europa, a diversidade étnica, linguística, sociológica ou comportamental que se vê a cada instante é muito maior do que a que a maioria das pessoas teria acesso em uma vida inteira. Nunca houve tantos estranhos. Se não há o preparo ou a abertura para conhecê-los e dialogar com eles, o choque é praticamente inevitável.

Desde o Império Romano que se sabe que a diversidade é a maior fonte de riquezas. As capitais de grandes impérios sempre foram cidades de grande explosão cultural por serem ambientes em que se trocavam ideias e cujos pontos de vista individuais eram debatidos em torno de valores morais e éticos abrangentes, que buscavam acomodar as diferenças individuais em um grande diálogo.

Pois justamente essa riqueza que, nas mídias sociais, é transformada em ameaça. As timelines dos Facebooks fazem cada usuário temer o diferente sem levar em consideração que o estrangeiro é só uma questão de ponto de vista. Para prender o público e vender suas preferências o sistema cria pequenos feudos de uma pessoa só. Quem não concorde com sua opção sexual, política, moral ou cívica que se afaste.

Esse relativismo moral, que considera "certo" tudo o que concorde com uma forma de ver o mundo e "errado" tudo que a conteste leva a uma intolerância muito maior e mais grave do que aquela que tantos se apressam a rotular como religiosa. Nela, os bárbaros não esperam às portas do feudo, mas já vivem entre seus habitantes há algum tempo. Alguns em posições de grande poder e influência.

Freud defendia que não era a religião que criava a violência, mas exatamente o contrário. Pessoas violentas sempre exploraram a religião como uma forma eficaz de transmissão de suas mensagens, mas há pouca relação entre as duas grandezas. O ser humano é agressivo mais por ser um animal social do que por crer em abstrações divinas. A mesma força que torna um grupo coeso tende a repelir quem se opõe a ele.

Em nome dos ideais de um grupo, boas pessoas cometem os atos mais cruéis. Cidadãos de bem na União Soviética de Stálin, na Alemanha Nazista, na China de Mao e no Camboja de Pol Pot cometeram grandes atrocidades. Todos tinham em comum o fato de considerar a religião o ópio do povo.

Mísseis e drones podem destruir postos e quartéis da organização terrorista autointitulada Estado Islâmico, mas dificilmente acabarão com o ódio e a violência que hoje é propagada por eles. Em um mundo contemporâneo cuja modernidade vem acompanhada da exploração e desigualdade, a fé mais poderosa tende a ser exatamente a fé que se opuser com maior radicalismo a essa modernidade.

Chamem-na de Taleban, de ISIS ou de qualquer outro nome exótico da moda, sua causa é sempre a mesma. Não demanda um grande esforço intelectual para perceber o contexto de onde surgem tantos jihadis. Ao redor do mundo, eles estão nos grotões. Não são considerados cidadãos, mal têm direito à identidade. Não têm nada a perder.

A desintegração dos valores sociais em nome da ganância individual, que transforma os que antigamente eram chamados de "desafortunados" em "perdedores" é sinal de uma civilização que se tornou decadente. Desde antes da queda de Roma, sempre que o prazer imediato se sobrepôs à viabilidade futura o alarme soou. Pena que hajam tão poucos a ouvi-lo.

Ao longo da História não faltaram intelectuais a propor o fim da história. No entanto ela continua, em sua dialética, a desafiar qualquer ideologia que se acredite definitiva e universal. À medida que o mundo se torna mais populoso, integrado e faminto de recursos, a História só tende a se tornar mais complicada, com um número crescente de atores e cenários.

Para defender um país, um exército talvez seja o suficiente. Mas para defender uma civilização ainda não se inventou arma melhor do que a tolerância e a educação.

Pena que ninguém pensa nelas até que seja tarde demais.


Endereço da página: