Folha de S. Paulo


Mais farsa do que tragédia

Muitos acreditam que o reality show da mídia social tenha contornos trágicos. Teme-se um radicalismo de visões reacionárias que pode colocar em risco boa parte das conquistas econômicas e sociais. No entanto, como se vê em todo espetáculo circense, o exagero de cada cena promovida por ali é tão extravagante quanto improvável. Como boa farsa, seus choros, gargalhadas e confusões abundam sem que se chegue a soluções.

Entre listas e GIFs, memes e vídeos, o cenário dinâmico da rede se sobrepõe à trama, que, incompreensível, é sujeita a um volume tão grande de mudanças e inversões que segui-la é quase impossível. A confusão é tamanha que a maioria da plateia logo abandona qualquer tentativa de atribuir-lhe sentido e, como em um filme pornô, fica por ali apenas para ver os protagonistas partirem para as vias de fato. Pouco importam origens ou motivos.

Até mesmo aqueles desocupados que alegam compreender o que acontece de verdadeiro entre tantos mimimis e hashtags (nem que seja para se aproveitar da verba do publicitário mais próximo) deixam claro seu atordoamento, confusão e decepção.

Lançando mão de um absurdo quase deliberado e de atuações estilizadas, a farsa digital é programa recorrente no teatro do Facebook, reeditada com leves alterações em personagens e temas. Isso não parece incomodar. Sedento de Circo, o público não parece interessado em profundidade moral ou ética. Basta ter algo sobre o que falar na próxima conversa de elevador.

Seguir uma linha de coerência ou tentar atribuir sentido aos comportamentos fanfarrões de seus personagens é uma tarefa inglória e, em última instância, desnecessária na ópera cômica da mídia social. A racionalidade não é bem-vinda por ali. E a música é mais grandiosa quanto maior for a tragédia.

Compositor e libretista de sua ópera grandiloquente, cada personagem se considera o centro do mundo e um fim em si mesmo. O resultado é um drama tragicômico, em que situações corriqueiras vivenciadas por gente ridícula, banais demais para serem do interesse de alguém, se tornam espetáculo. Não há debate, apenas bravatas. Ao som de panelas e trios elétricos, sopranos, tenores, contraltos e barítonos desafinados berram esganiçadamente:

- Coxinha!
- Petralha!

Etc.

Quando tudo o que se vê é a selvageria e a virulência de comportamentos e opiniões na mídia social, é natural que uma razoável preocupação surja. Por mais que haja quem se interesse em acreditar que o mundo está perdido ou em fofocar a respeito das disfunções das celebridades, tais disfunções não são tão bem recebidas quando o problema está perto de casa ou pode, mesmo que indiretamente, acarretar situações constrangedoras.

"A História se repete", já dizia Hegel. "Primeiro como tragédia, depois como farsa", complementou Marx. Ambos a compreendiam como disputa entre as ideias e sua viabilização. Segundo eles esse conflito, bem resolvido, levaria ao progresso.

Outra expressão popular de Marx (que por sua vez teve grande parte de suas propostas transformadas em farsas, paródias de humor negro absurdo) era a de que "As pessoas fazem a sua própria história, mas não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado." Ou seja, se comportam da forma que sabem, mesmo que tal atitude traga consequências negativas.

A maior crítica de Marx às revoluções era seu comportamento tempestuoso e violento, irracional. Sua esperança por uma revolução verdadeira consistia na autocrítica e constante avaliação, interrompendo ações impulsivas em busca de melhores reflexões. Para ele, essa postura seria essencial para testar os resultados imprevistos e tirar algum resultado positivo da fúria revolucionária.

Em um século e meio dessa publicação, praticamente todo tipo de revolução e experimento social foi testado, do socialismo ao nazismo, do fanatismo ao capitalismo financeiro, do isolacionismo à globalização, do tradicionalismo à digitalização. Autocrítica que é bom, no entanto, até agora não veio. Pelo menos por parte de ninguém que esteja no poder. Nem que seja o poder do pequeno reinado de seu mundinho na mídia social.


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