Folha de S. Paulo


Nenhuma ilha é uma ilha

O poeta inglês John Donne, autor da famosa expressão que contrapõe homens a ilhas, hoje provavelmente apelaria para outra metáfora. Na rede conectada em que se vive, da qual a internet representa só uma pequena parte, não há mais ilhas desertas.

O vírus cognitivo que chamamos de "Cultura" surgiu há cerca de 70 milênios na espécie, estimulando-a a criar estruturas sociais cada vez mais complexas, cada uma com sua interpretação particular da realidade. Na forma de mitos, instituições e costumes, esses padrões de comportamento criaram uma nova ciência, separando seus atos de simples motivações biológicas e criando que se passou a chamar de "história".

A opinião é do historiador israelense Yuval Harari, em seu abrangente livro chamado "Sapiens", recém lançado pela L&PM. Segundo ele, não se sabe ao certo como a história começou. Uma coisa é certa: ao ganhar independência do determinismo biológico, as narrativas se tornaram cada vez mais complexas e multifacetadas, indistinguíveis da realidade. Para compreender o Cristianismo ou a Revolução Francesa, defende o autor, já não basta (nem adianta) buscar compreender a interação de genes, hormônios e organismos com o seu ambiente. É preciso levar em conta a interação de ideias, imagens e fantasias.

A cultura humana, por mais forte que seja, não é suficiente para dissociá-lo do animal que o precedeu. Com 99% de seu DNA idêntico ao de chimpanzés e bonobos, o hominídeo tem menos de sapiens do que gostaria, e constrói boa parte de suas instituições e ideários por cima dos mesmos instintos dos neandertais e primatas que o precederam, com os mesmos desejos, medos e relações familiares do que se vê entre outras espécies de macacos.

A semelhança entre as espécies é tão grande que diferenças só aparecem quando se formam aglomerados de mais de 150 indivíduos, como propõe o antropólogo inglês Robin Dunbar, ao comparar o tamanho dos cérebros humanos com o de outros primatas. Quando as aglomerações chegam aos milhares de indivíduos, as diferenças impressionam. Padrões de comportamento como famílias, nações, partidos políticos e corporações jamais poderiam ser formadas pelos cérebros que não tem o nosso 1%.

A mesma cultura que propicia viagens da imaginação também restringe seus participantes a confinamentos imaginários. Como diz a sabedoria popular, a Cultura proíbe tudo que a Biologia permite. O que é possível é, por definição, também natural. As restrições que o bando de radicais fundamentalistas disfarçados de religiosos espalhados pelo mundo alegam ser "contra a natureza" não são tiradas da Biologia, mas da Teologia Cristã, praga medieval que insiste em se perpetuar através do discurso apavorado e medíocre de todos que defendem qualquer tradição.

Cada cultura tem crenças, normas e valores que mudam com o tempo. De vez em quando retrocedem, mas a tendência geral é avançarem para um ambiente plural e tolerante, rico em oportunidades. As mudanças podem vir de conflitos e contradições internas, embora sejam, na maior parte das vezes, aceleradas pelo contato com outras visões de mundo.

Ao longo dos milênios, diferentes culturas foram atraídas ou conquistadas por civilizações maiores e mais complexas, tornando o mundo cada vez maior em oportunidades e pontos de vista, ao mesmo tempo que menor em diversidade. A cultura é global, mesmo que não seja homogênea. Não há mais ilhas desertas ou populações isoladas. As poucas famílias que ainda se escondem na Amazônia e Nova Guiné são exceções que validam a regra.

Organismo social heterogêneo, a rede global está longe de ser uniforme. E isso é uma excelente notícia. Ela conecta bilhões de indivíduos que, mesmo tendo estilos de vida e origens completamente diferentes, trocam ideias entre si usando das mesmas abstrações, estruturas tão complexas quanto pátrias ou corporações. Quando culturas entram em conflito, não há mais choque de civilizações. Suas forças e táticas podem ser diferentes, mas os termos –sejam eles dinheiro, armas ou vírus de computador– são os mesmos.

Alguns ingênuos ainda buscam fugir dessa cultura global em que se vive hoje, propondo um retorno à sociedade pura do "bom selvagem", que seria autêntica, livre dos pecados modernos. Isso não é possível. Todas as associações humanas são colagens de culturas que a precederam. Sem a colonização do México não haveria pimenta na Índia ou macarrão ao sugo na Itália. Não se pode voltar a um estado "inicial" sem causar ainda mais danos. E mesmo ele seria tão isolado e puro quanto uma jaula de zoológico.

Não há saída possível para a civilização contemporânea a não ser o entendimento de seu poder e dimensão e, através dessa compreensão, da busca por uma verdadeira mudança, de todos para todos.

Nos últimos 100 anos nossas vidas se transformaram mas nossos corpos não. Mudamos pouco porque as máquinas e a sociedade o fizeram por nós. Pouco importa o quanto nossos futuros descendentes se impressionem ao ver como estávamos distante da Utopia, eles se parecerão conosco. Isso ocorre porque, para seres humanos, o futuro evolucionário não reside mais no que se é, mas na forma com que se pensa.


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