Folha de S. Paulo


Por que tão sério?

Uma espécie de masoquismo permeia os valores contemporâneos. Tudo é muito sério, muito dramático. Pouco importam as conquistas da Ciência, o mundo parece ter se transformado em uma rede global de problemas e injustiças, cuja solução está sempre em outra época ou lugar.

Um cotidiano tão pesado demandaria uma reflexão para não matar todo mundo de estresse. Infelizmente não há tempo para isso, todos estão ocupados demais, planejando e mensurando cada minuto para que não sejam perdidos.

No mundo quantificado e computado, o tempo livre está em risco de extinção, restrito desde a escola a horários predeterminados, cada vez menores. Quando se chega à vida adulta, ele acaba espremido entre os compromissos pessoais e profissionais ou sufocado pelas timelines e séries no Netflix. Em uma sociedade que supervaloriza o trabalho e a comparação, a única diversão permitida é a competitiva. E o importante é vencê-la.

O ato de brincar sem compromisso é, no entanto, parte fundamental do comportamento humano. Camuflado sob a forma de arte, livros, filmes, música, comédia e flerte, ele é tão natural quanto contar histórias, ouvir ou fazer música.

É difícil justificar a importância de uma brincadeira, já que ela normalmente consome tempo, gasta energia, pode custar um bom dinheiro e ser perigosa. Uma coisa é certa: ela deve trazer benefícios evolutivos, senão provavelmente já teria sido extinta.

Ao contrário do que defendem os chatos, brincar não significa necessariamente uma fuga da realidade. Uma boa brincadeira pode servir como uma espécie de meditação, ajudando seus participantes a refletir, descomprimir e se conectar de forma mais íntima com o mundo que os rodeia, explorando sensações de risco e poder em um ambiente protegido.

Por mais que os mais velhos se enfureçam com a mania dos novos em querer transformar tudo em jogo, a tendência é inevitável. Jogos e brincadeiras são tão importantes para o século 21 quanto a voz e a imagem o foram para o século precedente.

Na Idade Mídia o cinema, o rádio e a TV levaram a ficção e o jornalismo para uma audiência passiva e impressionada. Hoje o mundo digital permite ao ex-público que se transforme em usuário, ativo na manipulação e recombinação da história. Mesmo quando a notícia vem pronta, o jogo é outro, e consiste em verificar a fonte e os argumentos. Sua dinâmica está por trás de boa parte do balé entre o produtor e o (re)transmissor de conteúdo.

O sucesso de redes como Twitter ou Facebook vem, em parte, de serem um tipo de jogo social, em que cada membro cuida de seu perfil e relacionamentos, buscando aprimorá-los de acordo com seus interesses, livre para fazer o que quiser dentro das regras da comunidade. É daí que surgem divertidos imprevistos como retweets, hashtags, memes e selfies.

Cada pessoa leva no bolso um aparelho que é uma mistura de ferramenta com brinquedo. Muitos ainda são sistemas bloqueados, que impedem seus usuários de uma exploração mais profunda. O sucesso de comunidades de hackers e makers e a popularidade de ambientes como o "Minecraft" deixam claro o interesse por novos territórios a explorar.

À medida que a vida contemporânea está cada vez mais envolvida com sistemas complexos de informação e interação, as fronteiras entre trabalho e diversão e conceitos sobre o que constitui um jogo estão mudando.

Uma prova disso está no sucesso da abordagem experimental de empresas como Apple e Pixar, ou no de CEOs de empresas disruptivas, como Google e Amazon, crescidos em escolas Montessorianas, que valorizam as atividades lúdicas.

Mas para tirar o máximo partido de uma atividade lúdica, é preciso se deixar entregar ao ambiente, suspendendo momentaneamente a obsessão com a produtividade, o relógio e os resultados. Este é, surpreendentemente, o maior desafio. A vida das crianças está cada dia mais atarefada, preenchida com tantas atividades que praticamente não sobra tempo para que se envolvam em processos de autodescoberta. Em sua agenda não falta ação, mas intenção. A brincadeira não obedece essa métrica. Para ela o que vale não é o fim, mas o caminho.

Já estava na hora. É insano que a maioria dos profissionais contemporâneos esteja infeliz com o trabalho. Quando não há tempo para integrar momentos lúdicos na atividade produtiva, o que resta é uma vida sem alegria nem criatividade. Como se diz por aí, o oposto da brincadeira não é o trabalho, mas a depressão.


Endereço da página: