Folha de S. Paulo


E-cemitério

Passou o Natal e com ele mais uma oportunidade para torrar parte do décimo terceiro em presentes para si mesmo, para a casa e para os entes queridos. A câmara poderia ter mais megapixels, o laptop não deveria sofrer para rodar aplicativos, a TV poderia ter melhor definição, celulares e tablets poderiam ser mais espertos. Alguns dos velhos equipamentos acabam repassados para cônjuges, pais ou crianças, mas para a maioria o destino é uma gaveta, em que serão esquecidos até que sejam definitivamente descartados.

A indústria se alegra com a obsolescência programada, retirando o apoio a velhas máquinas e a sistemas operacionais antigos, alegando que isso retarda a inovação. Mas não é verdade. Muitas aplicações, como impressoras de recibos, não precisam de máquinas rápidas ou sofisticadas. As outras deveriam estar abertas a upgrades. Trocar de aparelho deveria ser exceção, não regra.

O uso e descarte indiscriminado de dispositivos eletrônicos cresce em um ritmo sem precedentes. Novas tecnologias industriais criam elementos magnéticos de alta potência, pigmentos cerâmicos, aditivos metálicos e plásticos que tornam sensores, telas, microchips, lentes e baterias menores, leves, econômicos, precisos, estáveis e duráveis.

Com seu uso, cresce a demanda por novos materiais. Na virada do século, cada celular usava cerca de 20 minerais. Modelos mais modernos usam mais de 60 elementos. O processo de mineração é sujo, cruel e agressivo, poluindo o ar e o solo com metais pesados, como mercúrio e chumbo ou radiativos como tório, e provocando câncer em quem deu azar de trabalhar ou morar perto das minas.

Um vez incorporados aos aparelhos, reaproveitar minérios é tarefa inglória. Muitas vezes é mais fácil tirar matéria-prima do solo do que separá-la dos outros componentes de um smartphone.

Estima-se que haja cerca de 32 toneladas de ouro dispersas entre os celulares no planeta –99% deste ouro será incinerado ou enterrado em aterros sanitários, o que inviabilizará sua recuperação. Com ele também serão eliminadas generosas quantidades de cobre, platina, lítio, alumínio, níquel, estanho e zinco, entre outros. Uma parte considerável dos aparelhos descartados nem terá sido usada, já que se tornou obsoleta sem deixar a prateleira.

Mudanças rápidas na tecnologia, associadas à incompatibilidade com versões anteriores resultam no aumento do lixo eletrônico. Com a popularização dos equipamentos, o avanço da Robótica e a Internet das Coisas, esse volume deve crescer.

Um dos maiores desafios da reciclagem eletrônica está na remoção das baterias e metais importantes de cada aparelho. Na cidade de Guiyu, no sul da China, mas de 150 000 pessoas trabalham turnos de 16 horas para desfazer velhos equipamentos e recapturar elementos que podem ser vendidos ou reutilizados. Uma das fontes de renda da república de Gana, no oeste africano, é a importação de equipamentos usados, arcando com a poluição que países "desenvolvidos" tem limitada por lei. Boa parte desse lixo é queimado a céu aberto, poluindo o ambiente com antimônio, arsênico, bismuto, boro, nióbio, selênio e titânio.

É preciso repensar como se produz e consome a tecnologia. Não será possível manter uma indústria crescente se a cada ano milhões de aparelhos forem jogados fora. Da mesma forma que o petróleo, a água e as florestas, que eram considerados recursos infinitos até que um dia acabaram, é muito provável que nos próximos anos seu telefone não evolua por falta de algo tão remoto quanto manganês ou berílio.

Tão importante quanto a nova tecnologia é o desenvolvimento de políticas que a acompanhem. Fabricantes de produtos eletrônicos precisam se responsabilizar pela manutenção e reciclagem dos componentes que colocam em seus aparelhinhos tão lindos. Só assim desenvolverão práticas que tornem o reaproveitamento dos componentes uma parte do processo industrial, para o bem de todos.


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