Folha de S. Paulo


Mulher tem arma digital contra assédio

Talvez por ter sido criado numa família de muitas mulheres -irmãs, primas de primeiro e segundo graus, amigas destas todas, madrinha e filhas da madrinha, enfim-, talvez por isso tenha aprendido desde cedo duas coisas:

1 - é preciso respeitar as mulheres, elas não existem para servir os homens.

2 - as mulheres precisam aprender a se proteger, justamente para não servirem aos homens naquilo que eles julgam conveniente.

Mais duas explicações necessárias: as mulheres da minha família sempre foram (e ainda são...) muito marrudas, voluntariosas, ativas, cientes e defensoras de seus direitos, até mesmo num tom acima, característica das famílias de origem italiana. A outra explicação: na família havia também muitos homens -irmãos, primos, agregados e tal, que além de respeitarem estas moças, estavam sempre a postos para sair na porrada quando algum engraçadinho partia para a ignorância, indo além da abordagem razoável e respeitosa, forçando a barra ou atacando sexualmente. Estou falando de 30/40 anos atrás...

Mas é preciso dizer que mesmo naquela época este esquema familiar era praticamente uma exceção diante da verdadeira parede de silêncio que sempre cercou, e permaneceu cercando ao longo de décadas, os casos de ataques a mulheres, em geral minimizados, escondidos, escamoteados, quando não atribuídos à própria vítima, que estaria se comportando indevidamente, usando roupas inadequadas, expondo-se demais, ou seja, "pedindo" para ser atacada...

Afora casos familiares como o citado, esta costumava ser a e continua sendo a rotina na maioria dos casos de assédio, ataques e violência contra a mulher, o que anualmente é potencializado pelo suposto "vale tudo do Carnaval".

Mas, este ano, uma tendência que felizmente vinha se consolidando recentemente deixou bem claro tanto para as meninas quanto para os abusadores potenciais ou reincidentes: não vale tudo, não!

Está em curso o que, com certo exagero, poderia se chamar de uma revolução digital a favor da mulher, que pode e deve ser fartamente utilizada tanto para se precaver quando para denunciar os abusos e suas derivações - as desculpas, justificativas esfarrapadas, as bravatas dos machões incorrigíveis.

Parafraseando o clássico cartaz em que uma trabalhadora aparece mostrando o braço forte e dizendo "We Can Do It!", sim, amigas, cada vez mais vocês podem se defender, espantar os energúmenos, denunciar os meliantes e estabelecer uma grande rede sanitária contra os abusadores e seus sustentadores, tendo como arma poderosíssima as redes sociais.

Para que fique claro: abusador é aquele que vai pra cima da mulher que escolheu para que faça o que lhe aprouver e não aceita nenhuma negativa como resposta, partindo para a violência ou para a ofensa. E sustentador é o expectador inerte, o comerciante omisso, o segurança conivente, o policial misógino, o ativista de Twitter que defende o abusador, todos ou tirando o corpo fora ou criminalizando a vítima.

Cada vez mais, toda essa rede de opressão feminina está à mercê do poder de multiplicação do Facebook, do Instaram, do Twitter e quetais. Um evento que poderia ficar - e antes ficava mesmo- restrito ao ambiente em que ocorrera ou quando muito ao circulo mais íntimo da vítima, hoje ganha o mundo por meio de comentários, replays, views e se propaga como pólvora, expondo devidamente os envolvidos, inclusive para muita gente que considera estes indivíduos pessoas "de bem".

Caso recente de bar na Vila Madalena é exemplar: a moça foi violentamente assediada, o pessoal do bar ficou do lado do abusador, a polícia veio mas fez que não era com ela e tudo ficaria por ali se o post da moça não virasse uma bomba, se multiplicasse, ganhasse meninas e meninos como adeptos e multiplicadores, inclusive de outros casos ali acontecidos. O movimento cresceu ainda mais quando o bar resolver dar uma resposta absolutamente imbecil, procurando incriminar a vítima. Mesmo voltando atrás, não convenceu ninguém e acabou tendo que permanecer fechado durante todo o Carnaval. Vendo ir pelo ralo uma imagem comercial que demorou 25 anos para construir...

Há outros casos registrados este ano, vários, alguns inclusive envolvendo até mesmo a mídia, como a notícia em que o abuso de um padrasto foi chamado de "encontro amoroso", mas corrigido diante da grita que gerou.
E há ainda os milhares de casos ocorridos Brasil afora dos quais ninguém ficou sabendo...

Mas está claro que o próximo Carnaval não vai ser como este que passou.

Atenção você que abusa, você que faz de conta que não vê, você que protege seus fregueses inconvenientes, você que não faz cumprir a lei: a moçada está de olho, a moçada está online!

Ps1 - Certamente muita gente aqui vai perguntar: mas onde acaba a paquera, a cantada normal e bacana e onde começa o assédio o abuso, argumentando que há um eventual exagero por parte das moças que pode inculpar indevidamente um homem? Simples: o limite é a palavra não.

Não é não, ok?

Ps 2 - E você vai partir pra cima de alguém acusado de assédio e violência fazendo posts na rua rede, tenha o cuidado de checar minimamente a veracidade dos fatos que está narrando, para não ser, você também, responsabilizado criminalmente.


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