Folha de S. Paulo


O mundo a seus pés

Ter passado os últimos 10 dias em Nova York me ensinou que:

1 - houve um surto psicótico no Brasil que levou um número não desprezível de pessoas a acreditar delirantemente que a) os militares poderiam ter a mais remota ideia de querer tomar o poder à força, interrompendo o ciclo democrático que em embora ainda incipiente já vai para 30 anos, e b) que isso seria bom para o país.

Para externar minha opinião, reproduzo, referendando-o, o pensamento de uma amiga-mais-que-querida: "Se essas pessoas que estão pedindo os militares de volta não sabem o que estão dizendo, são apenas imbecis. Agora, as que sabem e ainda assim pedem a volta dos militares, ah, estas são desprezíveis..."

Basicamente, é o seguinte: censura nunca mais, tortura nunca mais –pelo menos tortura de cunho ideológico, porque as câmaras continuam ativas nas cadeias e presídios, em geral para pretos e pobres.

2 - A segunda língua em Nova York é o português. Não deve ser, mas parece. Não que inglês seja a primeira, talvez o espanhol, com o chinês correndo por fora. Impossível ir a qualquer evento ou ponto turístico sem ouvir os sotaques mais variados do país varonil, e não são poucas as lojas que mantém vendedores brasiliglotas para atender à seleta freguesia que, como se sabe, gasta muito por ali. Tanto que, na chegada ao país, talvez eu tenha sido o único passageiro a retirar apenas uma mala comum da esteira...

3 - Símbolo mais que perfeito da sociedade de consumo, a Big Apple, como não se diz mais, evidencia que não vamos muito bem em termos de sustentabilidade. Transportes alternativos e quilômetros de ciclovias não são suficientes para impactar positivamente na diminuição do trânsito infernal, posturas conscientes de consumo cotidiano não te impedem de gerar uma quantidade absurda de lixo advindo de embalagens descartáveis que contaminam todos os ambientes em todos os lugares, nas mais variadas situações. Assim: você pede um croissant com manteiga, mas não recebe um pão aberto ao meio com alguma manteiga nele, mas sim um saco de papel com um croissant dentro, acompanhado de uma embalagem de manteiga e uma faquinha de plástico, que por sua vez está dentro de um saquinho de celofane, tudo sobre um pratinho de papelão. Ou seja, seis embalagens totalmente desnecessárias para comer um pão-com-manteiga...

E água e energia elétrica parecem ser - eles ainda não tiveram uma Cantareira... - bens infinitos, tamanho é o desperdício, com todas as luzes acessas e todas as torneiras abertas além do razoável. Pode ser apenas impressão, mas assusta.

4 - Quarta-feira passada teve eleição legislativa e só deu pra ficar sabendo que estava tendo votação se você lesse um jornal ou assistisse a um noticiário de TV. Ou trombasse na rua com uma ou outra escola pública ostentando uma plaquinha discreta: "Local de Votação".

Panfletos, bandeiras, boca-de-urna, horário político obrigatório? Nem pensar.

Para pensar: Obama reduziu o desemprego pela metade no país e mesmo assim levou uma surra nas urnas, vai ter que pererecar nos últimos dois anos para governar com um Congresso do contra.

5 - Por que não existe no Rio de Janeiro um lugar em que o cidadão comum e principalmente o turista possa ouvir Bossa Nova?

Não tem, a não ser um outro local de música ao vivo que em que haja lá alguém que toque uma ou outra canção. São Paulo a mesma coisa.

Estranho e inexplicável, dado que a Bossa Nova é o mais perene produto cultural de exportação do país e pode ser ouvida sistematicamente em muitos lugares do mundo, Japão sobretudo e incluindo, claro, Nova York, seja na rádio popular, seja num musak de loja, seja em um bar da moda.

Ou no templo do jazz na cidade, o Blue Note.

Propaganda turística: o Blue Note tem um programa bárbaro aos domingos (11h e 13h): show de jazz com brunch (básico), a 35 dólares por cabeça.

No último domingo a atração era o Dizzy Gillespie All Stars, versão reduzida da All Stars Big Band, que já veio ao Brasil. Tratava-se domingo da formação enxuta de trompete, piano, bateria e baixo, este empunhado por John Lee, remanescente da banda de Gillespie.

Ok, banda no palco, luzes apagadas, adivinhe o que vem? "Desafinado", de Tom Jobim e Newton Mendonça, com um belo solo de piano. De quem? De uma pianista brasileira, ótima, Abelita Mateus.

Não ficou por aí: a penúltima música do dia, antes de um tema ótimo de Dave Brubeck, foi nada mais nada menos que "Manhã de Carnaval", tema do filme "Orfeu Negro", como John Lee fez questão de informar aos presentes, composição de Antônio Maria e Luiz Bonfá, imortalizada por Maysa, João Gilberto e até Maria Bethânia.
 Por si só linda e tocante, a música mereceu uma interpretação arrebatadora do pistonista Greg Gisbert. De chorar, e chorei mesmo, mas acho que foi efeito do bloody-mary apimentado logo cedo...

6 - bom constar que o surto direitista-saudosista-militarista babão está cedendo espaço a um pouco mais de bom senso e civilidade. Quem viveu a ditadura brasileira com todas as suas cores - algo entre o cinza e preto - preza muito isso: bom senso, civilidade, liberdades democráticas e estado de direito.


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