Folha de S. Paulo


O paradoxo gay

O adolescente Kaique Augusto Batista dos Santos teve duas mortes. A primeira delas ocorreu quando ele despencou de um viaduto no centro de São Paulo e seu corpo foi encontrado todo desfigurado. A segunda, dias depois, quando a própria mãe do rapaz declarou finalmente acreditar que ele havia mesmo se suicidado, hipótese defendida desde a primeira hora pelas autoridades, mas que ela não aceitava, acreditando tratar-se de um assassinato motivado por homofobia.

Não sei o que foi mais triste, ver a mãe de Kaique em prantos denunciando a vitimização de seu filho ou depois, sempre em lágrimas, pedindo desculpas à polícia...

Aliás, pedidos de desculpas também pipocaram nas redes sociais, partindo de muitos daqueles que, de afogadilho, assumiram a versão homofóbica e partiram para o ataque em nome da indignação contra o que seria mais um crime desta natureza.

Muita gente, inclusive vários jornalistas, não perdeu tempo para expor sua revolta e seu desprezo em alto e bom som na internet. Como definiu o Alan Gripp em sua coluna na Folha de 23 de janeiro, o "tribunal Facebook" agiu rápido e decretou em tempo recorde seu veredicto: a culpa pela morte de Kaique era "do Estado, da Igreja, do Congresso, do Alckmin, da Dilma, do Feliciano"...

Em princípio fiquei bastante incomodado com a onda de "ódio contra o ódio" que extrapolou da internet pela morte do rapaz –num tipo de movimento que, aliás, vem se tornando cada vez mais corriqueiro no Twitter e no Facebook, banalizando a intolerância e a violência verbal na rede.

Afinal, não havia nenhuma testemunha, prova ou evidência do crime, apenas circunstâncias, e estas bastaram para instalar-se a gritaria.

Mas se as redes de relacionamento virtual às vezes reverberam exageradamente o que a dinâmica social expressa, elas partem de alguma realidade, e neste caso a realidade é nua e crua: Kaique era um jovem gay, morto em circunstâncias obscuras num país em que se agridem e se matam homossexuais, ainda mais pobres e negros, com um grau de impunidade assustador.

Na verdade, o Brasil tem vivido uma espécie de "paradoxo gay".

Por um lado, temos os homossexuais saindo à luz, conquistando espaço e respeito, constituindo família (mais de 60 mil casais formais, segundo o IBGE), deixando de esconder sua orientação pessoal em postos de trabalho importantes, por exemplo; temos ainda as maiores e mais animadas paradas de orgulho gay do mundo, assim como personagens gays protagonizando o principal programa da maior rede de TV do país (Félix e sua turma em "Amor à Vida", da TV Globo) e assim adentrando naturalmente a casa de milhões de telespectadores todas as noites.

Mas de outra parte ostentamos um aspecto sombrio e tenebroso, com estatísticas que nos envergonham e que colocam o país no topo dos levantamentos sobre intolerância e violência contra a diversidade. Como os apresentados pelo Grupo Gay da Bahia, segundo os quais em 2012 ocorreu praticamente uma morte por dia causada por homofobia –338 no ano.

Os recentes e frequentes casos de agressões que continuam ocorrendo nas noites da região da avenida Paulista, zona nobre de São Paulo, são, por assim dizer, apenas a ilustração desta triste realidade.

Portanto, é de se estranhar, mas não muito, quando casos como o de Kaique ganham as redes sociais e causam barulho supostamente além da conta.

Talvez este seja uma daquelas ocasiões em é melhor pecar pelo excesso do que pela omissão ou conivência.


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