Folha de S. Paulo


Combinar salmão e Carménère era algo ofensivo, mas desafio deu certo

Andrés Guzman/ Divulgação
Salmão chileno assado, defumado, cru e frito do chef Kurt Schmidt
Salmão chileno assado, defumado, cru e frito do chef Kurt Schmidt

Eis uma proposta que me ofenderia: o peixe gorduroso e a uva emblemática do Chile, tinta, potente. Nunca sugeriria essa dupla.

Mas fui me encontrar com os ótimos chef Kurt Schmidt e a sommelière Mariana Martinez, ambos chilenos, que passaram por São Paulo para uma divulgação da riqueza de produtos do país. E, num jogo muito pedagógico, me propuseram essa combinação, que eu nem deveria chamar de proposta, mas de desafio. E deu certo! Pensei nos Riojas Gran Reserva com peixes de rio brasileiros, outra coisa improvável e que dá samba.

O mais importante no mundo do vinho, mais que a taça, a safra, o preço ou os grandes rótulos, é a capacidade de provar todas as possibilidades, rejeitar as terríveis e aceitar as novas (e constatar as óbvias).

Esta não é uma coluna convencional, foi mais uma entrevista com dois personagens fascinantes. Passei uma tarde conversando com Mariana e com o animado Kurt, dessas pessoas que fazem renascer o gosto de qualquer um pela gastronomia.

O chef está inventando uma comida chilena. Tudo é fácil em países como França e Itália, em que as pessoas praticamente nascem com um queijo numa mão e uma taça de vinho na outra. Em lugares como Brasil, Argentina e Chile, gastronomia é pedagogia, temos que forçar nossas barras, ter coragem de colocar na boca algo diferente do trivial.

Ele, que passou pelo Noma, de Copenhague, outro lugar de invenção, disse uma coisa que me espantou: os chilenos rejeitam os mariscos e comem pouco peixe, mesmo naquele país com uma costa maravilhosa, com todos os pescados do Pacífico, preferindo as carnes de porco e de boi e os frangos. Lembrei-me de minha infância mineira, onde peixe só aparecia em desenhos animados na TV ou fritos até virarem um pedaço de couro, nas férias na praia.

O Chile é um país bem estranho, e isso é um elogio. Eu tinha um livro de um tal Benjamín Subercaseaux que se chamava "Chile, ou uma Geografia Louca", gostaria de reencontrá-lo. Era uma explicação bem pessoal do autor para o país que, num espaço tão esticado —4.329 quilômetros de norte a sul e meros 177 quilômetros na largura máxima, formando aquele mapa curioso, encaixado entre as águas geladas do Pacífico e os Andes— tem uma variedade de climas determinante. O deserto de Atacama e a Patagônia chilena como extremos. E, onde se diz "variedade de climas", lê-se: enormidade de produtos e de vinhos diferentes.

O mapa dos seus vinhos está sendo redesenhado, com novas regiões, mas nenhum país da América do Sul oferece tamanha diversidade. Por isso há de densos Syrahs a sutis Rieslings, mais qualquer outra casta que se queira. O vinho chileno, querido pelos brasileiros, continua o mais importado por aqui, e com razão.

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O restaurante 99
Não, a coluna não esteve no Chile, mas deu vontade de conhecer todos os cogumelos, peixes e preparações que o chef Kurt Schmidt está explorando na casa. Se fosse uma coluna internacional, certamente seria sobre o lugar. Schmidt conta seu trabalho com tanta verve que o desejo de reservar uma mesa é forte. O chef trabalha com produtos que ninguém dá atenção e quer colocar o Chile no mapa dos comilões. Próxima ida a
Santiago rumarei direto para lá.

Ouse uma uva
O Chile teve uma paixão recente de enólogos pela menosprezada casta País. A uva, que se acreditava autóctone (não é, vem da Espanha e se espalhou pela América com nomes de Missión na Califórnia, Criolla Chica na Argentina e País no Chile) sempre foi vinificada e consumida, no estilo "garrafão", mas ganhou novos usos nas mãos de atrevidos como o francês Louis-Antoine Luyt (este é um doidão que encontro nos lugares mais inesperados, e bebi alguns de seus vinhos mexicanos recentemente). A minha versão de País predileta, até agora, acessível, engarrafada em versão de um litro, para beber frio e por prazer, sem complicações, é o Cacique Maravilla Pipeño.

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Divulgação
vinhos da semana

Vinhos da semana
(1) Santa Digna Estelado Rosé, Devinum (R$ 122).
(2) Lapostolle Grand Selection Carménère, Mistral (R$ 101,57).
(3) Morandé Late Harvest, Grand Cru (R$ 89).
(4) Cacique Maravilla Pipeño, Costi Bebidas (R$ 85,40)

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