Folha de S. Paulo


Spike Lee revê suas origens em 'Ela Quer Tudo', relevante após 31 anos

David Lee/Netflix)
DeWanda Wise como Nola Darling em cena da série
DeWanda Wise como Nola Darling em "Ela Quer Tudo", refilmagem de Spike Lee para seu filme de 1986

Quando filmou "Ela Quer Tudo" (1986), Spike Lee ainda era verde, segundo diria em entrevistas posteriores. Queria tratar de mulheres e o machismo que as coíbe, mas considera tê-lo feito de uma perspectiva excessivamente masculina, sobretudo em uma cena de estupro da personagem principal, da qual afirmaria depois que se arrepende.

O eu lírico de Lee amadureceu tremendamente nos 31 anos que separam a versão para cinema —o primeiro longa do diretor que está para o Brooklyn como Martin Scorsese está para o submundo de Manhattan— da série da história da artista plástica Nola Darling.

A personagem que em 1986 coube a Tracy Camilla Johns e agora é vivida por DeWanda Wise é o que os americanos gostam de chamar de "espírito livre": pouco se importa com a opinião alheia, ao menos à primeira vista; relaciona-se com quem bem entende e como bem entende e não se dispõe a um compromisso com nenhuma outra pessoa que não ela mesma.

Por isso, é tachada de "aberração", de ninfomaníaca, de puta. Mantém três namorados (e por um breve período, uma namorada) em banho-maria, sem lhes oferecer nada além de bom sexo em troca de devoção.

Apenas para o mais narcisista deles, Greer (Cleo Anthony, um canastrão), a relação assim está em bons termos; para o mais conservador, James (o impostado Lyriq Bent), só pode haver algo errado com Nola.

Sua volatilidade é encarada como algo a se reverter envolto em um espectro quase divino (e portanto inumano) para o mais carente, Mars (papel que foi do próprio Spike Lee em 1986, e é impossível não vê-lo na reencarnação entregue ao carismático Anthony Ramos).

Mas a vida sexual de Nola importa menos que seus dilemas como artista em processo de consolidação em um Brooklyn que muda rapidamente com a gentrificação, tornando-se mais caro, mais branco, mais pasteurizado, menos preto.

É fascinante que o diretor do seminal "Faça a Coisa Certa" (1989) tenha conseguido se manter tão relevante em sua produção mais recente, mas é igualmente triste que o trabalho de Lee e sua lente sobre questões de etnia continue sendo tão necessário uma geração depois, e tão pouco tenhamos avançado.

Um sinal explícito disso é a avaliação de alguns críticos de que a série se assemelharia a um "Sex and the City" com uma protagonista negra, de um reducionismo desalentador.

Lee, afinal, convida a todos a ver o mundo da perspectiva de seus personagens, e o faz com graça e segurança. Assim como os novos moradores que chegam prontos para transformar Fort Greene, no Brooklyn, em mais um bairro como tantos outros que já existem em Manhattan e em qualquer cidade rica, alguns espectadores podem ter dificuldade em se afastar de sua zona de conforto para assistir uma série sobre uma mulher negra que não traga nenhum pingo de exotismo.

Assim como Lee em 1986, sua Nola Darling é imatura e relutante, mas porta uma mensagem fundamental.

Os dez episódios de meia hora de 'Ela Quer Tudo' estão disponíveis na Netflix


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