Folha de S. Paulo


Com elenco estrelado, Netflix moderniza faroeste em 'Sem Deus'

É perturbadora a cena de abertura de "Sem Deus", bom faroeste serializado que a Netflix estreou discretamente nesta quarta (22): em uma cidadezinha encravada no deserto do Novo México, sul dos EUA, corpos jazem por todos os cantos, nas ruas, em casas, lojas, no trem; alguns em avançado estado de decomposição, outros com um só tiro.

A fotografia de Steven Meizler —em seu segundo trabalho assinado em TV após uma longa carreira como primeiro assistente de câmera no cinema— é o ponto mais forte, mas não o único a merecer atenção nesta minissérie em sete episódios.

Criada e dirigida por Scott Frank, roteirista cujos créditos incluem o recente "Logan" e o mais longínquo "Minority Report" (2002), e com o prolífico Steven Soderbergh ("Traffic") na produção executiva, "Sem Deus" se ampara em um elenco estrelado, uma narrativa sem pressa e uma subversão bem calibrada de um gênero que é quase em si um grande clichê sobre masculinidade.

A protagonista é Alice Fletcher, uma viúva com um filho que decide abrigar um fugitivo, Roy Goode.

Fletcher é papel de Michelle Dockery, que viveu a durona-mas-sofrida lady Mary em "Downton Abbey". O sotaque britânico original ficou para trás, dando lugar ao acento arrastado do sul dos EUA. Os modos de nobre também, e, embora as duas personagens se encontrem no voluntarismo e no vanguardismo, há mais que um oceano entre elas.

La Belle, a cidadezinha produtora de prata tomada como cenário, é comandada por mulheres, e eis aí a boa sacada para derrubar o clichê. Os homens morreram ou fugiram; cabe a elas proteger o lugar de forasteiros que queiram pilhar o povoado da forma tradicional ou por meio da pressão de contratos espúrios.

Porque o gênero requer respeito ao formato, é preciso ter um bandido-mor, e esse papel cabe ao Frank Griffin de Jeff Daniels, que perdeu um braço em um confronto com seu ex-discípulo Goode (Jack O'Connell) e agora anda à sua caça. Em uma retomada da bela parceria com Daniels em "Newsroom", Sam Waterston interpreta o militar enviado a cidade, responsável por boa parte da narrativa em retrospecto.

Há paralelos com "Westworld", a série da HBO sobre um parque futurista que simula o Velho Oeste com robôs e nos propõe um debate sobre nossa falta de empatia com o diferente. Os personagens de "Sem Deus" são mais humanos e a narrativa é mais prosaica, sem tantas camadas, mas a linha reta (ou quase reta) que segue não desaponta.

A Netflix entrega aqui um produto à altura da sofisticação das produções da HBO, que por sua vez lança agora no Brasil um serviço de streaming que a liberta dos pacotes de assinatura para enfrentar o rápido avanço da concorrente.

Sem amarras de anunciantes para ousar, dobrando seu papel como plataforma e produtora e de posse de detalhes do gosto de seus estimados 100 milhões de assinantes no mundo, porém, a Netflix parece seguir galopando, inabalável.

Os sete episódios de "Sem Deus" estão disponíveis na Netflix


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