Folha de S. Paulo


'Black Mirror' é ótimo conto de terror para adultos

Tente dormir após ver "Black Mirror", a coisa mais enervante hoje na TV. Será como arrancar a própria pele e depois deitar-se na cama, tentando lidar com isso. É ótimo, mas não no sentido tradicional/agradável da palavra. É quase educativo.

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Daniel Kaluuya e Jessica Brown Findlay (a Lady Sybil de
Daniel Kaluuya e Jessica Brown Findlay (a Lady Sybil de "Downton Abbey") em cena do segundo episódio de "Black Mirror"

A série não é nova. Embora os sete episódios existentes tenham caído na Netflix há duas semanas, no meio de novembro, e o site de streaming tenha encomendado mais 12 (ainda sem data de estreia), a primeira das três temporadas foi ao ar em dezembro de 2011, praticamente outra era.

Nesse ínterim, as distopias a la George Orwell assumiram com força o lugar das séries de antiheróis. Só neste ano houve "Mr. Robot", "The Leftovers" 2, "Wayward Pines" e mesmo a mais doce "Sense8".

E ainda assim essa pérola criada pelo britânico Charlie Brooker sobre um futuro próximo no qual somos um refugo da tecnologia que nós mesmos criamos sobressai, dolorosamente atual, iminente, até.

Há de se ressaltar que o pedigree inglês faz diferença. Os níveis de autocrítica cáustica, comparados aos pares americanos, são imensos, e por isso o resultado incomoda.

"Black Mirror" é uma série-antologia, uma das primeiras, o que significa que se trata de uma coleção de episódios avulsos que podem ser vistos de forma independente.

O tema é comum a todos eles: a interferência que têm em nossas vidas a tecnologia e a mídia, mais explicitamente as redes sociais e a forma como nos retroalimentamos delas, sempre dispostos a observar, expor e compartilhar tudo, em uma ânsia contínua por atenção.

Nesse futuro hipotético pero no mucho, o premiê britânico (Rory Kinnear) é coagido a fazer sexo com um porco em rede nacional, com recordes de audiência de um público que se diz enojado mas é incapaz de piscar; e as pessoas têm mecanismos de filmagem de suas vidas colados à retina, passando a maior parte do tempo revendo e examinando as cenas numa versão moderna do mito da caverna, de Platão, em que a vida é um simulacro e os julgamentos a partir dele tomam o lugar da vivência em si.

Esse futuro supostamente hipotético também nos condenou à boa forma —com os gordos tratados como subhumanos execráveis— e à busca pela celebridade; à procura insistente pela juventude infinita e ao poder de "bloquear" pessoas da nossa vida, reduzindo-as (ou sendo reduzidos) a silhuetas "fora do ar".

No episódio mais perturbador, a condenação à revivência contínua de provações diante de um público atento se torna o pior dos castigos, uma cara nova, que troca fígado por consciência, do suplício de Prometeu (águia devora fígado que se regenera para ser devorado de novo).

"Black Mirror" é mágica porque, ao mesmo tempo em que tudo parece filosófico e etéreo demais, é também verossímil e identificável, e, portanto, assustador. Como uma casa de espelhos, que exagera o pior em nós ao ponto do grotesco. Ainda assim, somos nós, ali, expostos.


"BLACK MIRROR" está disponível na Netflix


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