Folha de S. Paulo


Boa notícia: a venda de automóveis despencou

Wesley Santos/Folhapress
Fábrica da GM em Gravataí
Fábrica da GM em Gravataí

A venda de veículos voltou a despencar em 2016, como vem ocorrendo desde 2013, após o recorde de 3,8 milhões de carros licenciados em 2012. Com isso, depois de seis anos de crescimento anabolizado por financiamentos e incentivos fiscais, o país acumula quedas sucessivas até chegar este ano ao correspondente às vendas de 2004, em torno da metade do pico histórico.

Do mesmo jeito que anunciaram a queda do ano passado, os capitães da indústria alegam que a retração acabou e 2017 deve ter um "pequeno crescimento". A previsão para 2016 foi corrigida no meio do ano para uma "pequena queda" e o resultado final foi de -20%.

No Brasil, retração na venda de automóveis é sempre vista com pessimismo por um vício de autoridades e analistas: desde os anos 1950, quando as montadoras se instalaram no país, o mercado de automóveis vem sendo tratado como principal termômetro do desenvolvimento da nossa economia. Por esse viés, se o número de carros vendidos cai, devemos nos preocupar.

Para quem pensa desse jeito, é bom se preparar para más notícias: as coisas só vão piorar, o fundo do poço não chegará nem mesmo quando a economia brasileira voltar a crescer. A gravíssima recessão que vivemos, provocada pelos desmandos na gestão econômica no segundo mandato de Lula e no primeiro de Dilma, gerou uma desaceleração acentuada na demanda por carros no país, mas a tendência internacional é de queda estrutural e permanente: o carro virou um mico, perdeu a imagem de liberdade, está associado a imobilidade, à paralisia; é apontado como "o pior investimento do mundo" pelos melhores consultores; se tornou sinônimo de insustentabilidade, poluição e aquecimento global.

Além disso, toda nossa indústria está baseada na tecnologia do século 19 (motor a explosão, ser humano na direção), quando em outros países uma nova geração transforma em sucata os 2 milhões de carros que serão licenciados no Brasil em 2017 e todos os anteriores.

Em outras palavras, mesmo quando passar a crise conjuntural brasileira, a indústria automobilística nacional seguirá seu movimento inexorável de queda. Muitos consumidores que até o início da crise sonhavam comprar carro, ao terminar a retração econômica já não terão o mesmo desejo, como acontece no mundo todo.

Um exemplo claro disso aparece no estudo sobre referências à mobilidade entre usuários de redes sociais no Brasil, produzido pela agência Nova SB como parte de um programa de pesquisas sobre temas atuais, chamado "Comunica que Muda". Segundo o levantamento, 44% das pessoas que postaram comentários nas redes sociais entre agosto e outubro passados preferem o transporte individual e 25% desejam comprar um carro ou moto. Parece muito, mas não é: na cidade de São Paulo, paradigma de consumo do país, cerca de 50% dos habitantes têm carro; no Brasil, são 25%. Ou seja, a manifestação de desejo de compra entre os frequentadores do Facebook, Twitter etc. é inferior ao índice de propriedade desse bem no templo do automóvel e fica apenas ao nível da média nacional (que inclui os Estados mais pobres). Se isso for revelador da demanda, a tendência é de estabilização da venda de carros em nível menor que o de São Paulo.

E isso não é ruim: a venda de automóveis tem efeitos daninhos para vários aspectos da vida nacional e sua decadência gera oportunidade de mudar o foco do desenvolvimento industrial, dos subsídios públicos e dos financiamentos ao consumo popular. Enquanto os governos do PT gastaram bilhões para anabolizar as montadoras (inclusive movidos por corrupção ), outros países apostavam em inovação, buscando ocupar uma posição no grid da corrida pelas tecnologias do futuro.

Há inúmeros danos estratégicos decorrentes do consumo intensivo de automóveis: a infraestrutura para os carros compete com os investimentos em transportes públicos (que são grandes empregadores, enquanto as montadoras de automóvel deixaram de ser); a poluição e os acidentes têm custos imensos para a saúde pública; o consumo de petróleo onera as contas externas do país; o foco das refinarias nos combustíveis para automóveis atrasa o desenvolvimento e encarece outros derivados e produtos petroquímicos; a compra de automóveis desperdiça a poupança das famílias.

Os mesmos incentivos fiscais e financiamentos sugados pelas montadoras, se investidos na construção civil, teriam gerado milhões de empregos e trariam benefícios de longo prazo para as famílias e finanças públicas. Mas o lobby, lícito ou ilícito, das fábricas de carro tem drenado para o setor, há mais de meio século, muito mais dinheiro do que para a habitação.

As políticas públicas de incentivo à retomada do desenvolvimento devem levar em consideração essa situação: os bancos precisam voltar suas linhas de crédito para áreas de maior empregabilidade, no curto prazo; perspectiva de sobrevivência, no médio; e geração de produtos e serviços de alto valor agregado, no longo prazo.

A queda abrupta no consumo de automóveis coloca à nossa frente mais rapidamente uma realidade que, sem a recessão, chegaria mais adiante. Depende da sociedade como um todo tratar a questão como problema ou oportunidade.


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