Folha de S. Paulo


Dona Santinha revisitada

Dona Carmela Dutra é muitas vezes relembrada como "Dona Santinha". Era uma dama muito conhecida por seu fervoroso moralismo católico. Diz-se que foi responsável pela proibição dos jogos de azar no Brasil, em abril de 1946. Ela também leva a culpa pelo expurgo dos membros do Partido Comunista do Congresso brasileiro.

Afirma-se que "Dona Santinha" era "o poder por trás do trono", durante a presidência de seu marido, o marechal Eurico Gaspar Dutra, o primeiro presidente democraticamente eleito depois da queda da ditadura Vargas em 1945 (ainda que Dutra tenha servido como ministro da Guerra de Vargas entre 1936 e 1945).

Os jogos de azar evidentemente não desapareceram em 1946, no Brasil. Os cassinos foram forçados a fechar. Milhares de pessoas perderam seus empregos. O grande Quitandinha Palace Hotel, em Petrópolis, os hotéis de Poços de Caldas, Minas Gerais, e o Cassino da Urca, no Rio, perderam seu glamour e sua raison d'être. Mas o jogo do bicho continua a prosperar. E loterias são operadas pela Caixa Econômica nos níveis federal e estadual.

Mas fiquei impressionado, ao visitar Londres na semana passada, pelos maravilhosos investimentos culturais feitos como resultado de verbas cedidas pelo Big Lottery Fund. Isso me pareceu um modelo que combina o insaciável desejo humano de apostar e a impossibilidade de eliminá-lo por via legislativa, como Dona Santinha desejava. Com o melhor dos resultados possíveis para o público.

O Big Lottery Fund apoia ampla gama de iniciativas e eventos culturais. Muitas restaurações históricas, peças, museus e concertos devem seu sucesso popular ao dinheiro da loteria. E o público respondeu com grande entusiasmo à "democratização" da cultura que é o resultado evidente dessa iniciativa. No Brasil, Silvio Santos, afinal, formou a maior parte de sua vasta fortuna pessoal com a Tele Sena. Talvez seja hora de o Brasil "estatizar" de maneira mais ampla o lucro privado, pelo bem público, e de considerar uma vez mais a legalização do jogo no país. Mas garantindo também que os lucros sejam usados para o bem público.

Dilma Rousseff poderia, claro, se assim desejasse, propor ao Congresso brasileiro a revogação da lei que torna o jogo ilegal. E que os proventos dos jogos de azar fossem usados (transparente e honestamente) para propósitos sociais e culturais. É bem possível que a iniciativa atraísse a oposição do presidente da Câmara dos Deputados, o evangélico Eduardo Cunha. Mas ela certamente deixaria seu nome na história do país. E é cedo demais para saber se Eduardo Cunha gostaria de entrar para a história como "Dom Santinho".


Tradução de PAULO MIGLIACCI


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