Folha de S. Paulo


Os meios e os fins

A notícia-bomba que deu manchete na Folha de sexta-feira abre, mais uma vez, uma velha e nem por isso desatualizada discussão: em jornalismo, quais são os fins que justificam os meios? Explico: para conseguir comprovar o que já se sabia nos bastidores da campanha, que bônus eleitorais estavam sendo vendidos com desconto pelos partidos a empresários que precisam "lavar" dinheiro, dois repórteres da Folha esconderam sua identidade, procuraram o comitê de Flávio Rocha, candidato à Presidência pelo PL, fizeram-se de interessados no negócio e trocaram um cheque de R$ 70 mil por R$ 140 mil em bônus.

Não há como não dizer que os jornalistas mentiram -por uma boa causa, mas mentiram. Na edição de sexta-feira, a Folha publicou longos trechos das conversas entre o repórter Xico Sá, que se apresentou como Francisco Menezes (seu nome mesmo), e o presidente da Comissão de Finanças do PL. O repórter disse representar um grupo de pequenos empresários da região de São José dos Campos (interior de São Paulo), que tinham "identidade" com o candidato do PL. Fechou o acordo e marcou a entrega do cheque -feita pelo jornalista Vicente Duarte, que se apresentou como um assessor de Menezes. Da troca, participou o empresário Nevaldo Rocha, pai do candidato Flávio Rocha.

A pergunta é: se não mentissem, como os jornalistas fariam para comprovar a venda com desconto dos bônus eleitorais, o expediente criado nestas eleições com intenção de dificultar o festival de doações irregulares da campanha de 89 e o surgimento de novos PCs Farias? "Não havia outra maneira de comprovar a existência do mercado paralelo de bônus", avalia a secretária de Redação Eleonora de Lucena. Durante quinze dias, segundo seu relato, a Folha preparou essa reportagem. Cercou-se de alguns cuidados rotineiros (como decidir que todos os diálogos seriam gravados) e outros especiais (a operação foi inteiramente monitorada pela Secretaria de Redação, com assessoria jurídica). Com as provas nas mãos, o jornal transformou a notícia em uma denúncia que pode mudar muita coisa nestas eleições, ou pelo menos no financiamento das campanhas.

A Folha usou artifícios que, no dia-a-dia de uma redação, são condenáveis. No desempenho de seu papel, um jornalista está proibido de mentir e o jornal, moralmente impedido de enganar quem quer que seja para obter notícias. Existem, sim, limites éticos para a apuração de informações, e o fato de que eles estão genericamente descritos no Novo Manual da Redação (no verbete "ética", entre outros) ou não aparecem em qualquer lei legítima de regulamentação da imprensa (que inexiste no Brasil) não significa que possam ser desrespeitados. Os limites éticos são definidos pelo direito individual dos cidadãos, e não podem ser ultrapassados.

Ocorre, entretanto, que o jornal foi colocado diante de um impasse: precisava desafiar esses limites para denunciar uma irregularidade grave, que na história recente do país chegou a provocar um cataclisma político traduzido no impeachment de um presidente. Por mais que circulassem rumores de que os bônus eleitorais estavam sendo arrematados por metade de seu valor de face, as chamadas autoridades competentes não tomaram qualquer providência até a publicação da reportagem de sexta-feira -o que só aumenta o tamanho da responsabilidade e do acerto do jornal.

Por tudo isso, o que a Folha fez tem justificativa, e os leitores que se manifestaram sobre a reportagem perceberam isso. Não recebi uma única ressalva em relação ao método de trabalho dos repórteres ou da Folha. Pelo contrário, houve quem telefonasse apenas para pedir que a ombudsman transmitisse cumprimentos aos jornalistas que desnudaram a negociata dos bônus eleitorais. Para os leitores, pesou a favor do jornal o fato de que a construção da reportagem foi apresentada de forma transparente, sem deixar dúvidas a respeito dos artifícios empregados. Para os leitores, os fins (limpar a campanha eleitoral) justificaram muito bem os meios.

Como ombudsman, entretanto, tenho uma ressalva a fazer à reportagem de sexta-feira. O jornal poderia ter dado mais destaque ao fato de que há denúncias (não comprovadas ainda) de que outros partidos também negociam seus bônus eleitorais com desconto. Um golpe de sorte acrescido de bom senso fez com que a notícia-bomba caísse no colo do PL, cujo candidato não tem chances de chegar ao Palácio do Planalto, e não no de Lula ou FHC, que polarizam as preferências nestas eleições (o jornal seria certamente acusado de partidarismo ou coisas ainda piores). Mas o leitor precisa saber que as suspeitas de irregularidades no financiamento das campanhas rondam todos os comitês eleitorais e são mais graves do que o simples uso de um carro de som ou de um fax do Congresso.

Quem não tem o que temer, que envie hoje suas contas à Justiça Eleitoral, ou mesmo à redação dos jornais.

Na edição de ontem, uma declaração do ministro da Justiça sobre este caso pode ser encaixada na categoria daquelas que fazem cair o queixo. Disse Alexandre Dupeyrat que a Folha pode ter cometido, ela própria, crime eleitoral e fiscal ao denunciar a venda irregular dos bônus do PL. O ministro deve ser mais uma daquelas pessoas, ingênuas para dizer pouco, que acreditam que a culpa pelas más notícias é sempre da imprensa.

Julho, mês das férias escolares, teve mais telefonemas do que junho (139 contra 109 no mês anterior), e menos cartas (279 contra 374). No total, a ombudsman conversou com ou leu cartas de 419 leitores (485 em junho), e suas queixas estão resumidas no quadro aqui ao lado.

Reclamações sobre assinaturas (que não são da área da ombudsman, diga-se de passagem) somaram 71 queixas. Na maior parte dos casos, elas vêm de leitores inconformados com o fato de que, ao renovar seus contratos, o brinde é um livro enquanto os novos assinantes recebem fitas de vídeo. Tenho sugerido a esses leitores que procurem o Serviço de Atendimento ao Assinante para protestar, e não posso dizer que eles não têm lá suas razões. São leitores fiéis, que se sentem preteridos. De qualquer modo, a Diretoria Executiva de Circulação tem sido sensível aos casos, e trata de resolvê-los da melhor forma possível.

Uma pesquisa feita no encontro anual de ombudsmen de imprensa em Minneapolis (EUA), em maio último, chegou aqui na semana passada: 27 responderam perguntas sobre suas atividades. Uma delas, interessante, diz respeito ao que os ombudsmen consideram a parte mais estressante de seu trabalho: 7 disseram que é lidar com a redação e sua resistência em reconhecer erros, 6 afirmaram que é passar o dia todo convivendo com críticas e reclamações, 4 apontaram o acúmulo de funções (porque fazem outros trabalhos na redação), e os restantes deram respostas variadas, mas citaram o isolamento, a falta de popularidade entre os colegas que criticam e o fato de que têm sempre de encontrar um "culpado" pelos erros apontados pelos leitores.

Como se vê, aqui como lá, ser ombudsman não é exatamente fácil.

Desde terça-feira, com a estréia do horário eleitoral no rádio e na TV, a Folha circula com o caderno "Supereleição" encartado todos os dias. O caderno, que guarda muito da experiência (positiva) do "Copa 94" em termos gráficos, tem oferecido aos leitores a mais completa e extensa cobertura das eleições, ainda que o primeiro turno esteja marcado para 3 de outubro. O esforço, entretanto, revela uma velha fraqueza do jornal: para fazer o "Supereleição", a Folha tem sacrificado outras editorias, que perdem espaço. Na semana que passou, Esporte, Ilustrada e Cotidiano (São Paulo para quem recebe a edição SP/DF) foram as mais atingidas. Os protestos dos leitores já estão se fazendo ouvir.


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