Folha de S. Paulo


O leitor, o atlas e as notícias

Jornal é notícia para o jornal? Em casos especiais, sim. Dou um exemplo: a esta altura, não resta dúvida de que o lançamento do atlas da Folha é um sucesso que superou as expectativas mais otimistas. Os 1,1 milhão de exemplares impressos no domingo passado se esgotaram, assim como os 680 mil da última sexta-feira, quando a Folha voltou às bancas com o primeiro fascículo do livro e sua capa dura. Hoje, o jornal bate novo recorde e chega aos 1,3 milhão de exemplares. Isso é notícia.

A julgar pelos telefonemas e cartas que recebi na semana passada, o leitor aprovou o atlas. Nota 10, com louvor. Isso também é notícia. Ocorre que o leitor está se cansando dela, da promoção (melhor dizendo, da autopromoção) da Folha em torno de seu atlas. O jornal virou a notícia mais importante do jornal e, ao contrário do que acontece em qualquer redação, não se economiza espaço para ela: a Folha passou as duas últimas semanas dedicando generosas chamadas em sua Primeira Página, e páginas inteiras de cadernos como Brasil, o mais nobre da edição, para falar do atlas. Mobilizou repórteres para registrar sua repercussão (óbvia; não deve haver quem ache o livro inútil, ou ruim, ou malfeito) e ainda encheu o Painel do Leitor com cartas de elogios.

"É um exagero", reagiu um assinante de São Paulo, professor universitário na área da saúde. Seus argumentos são claros: ele acha que "jornal foi feito para publicar notícia, e se quer dar um presente como esse atlas para seus leitores, ótimo, mas não tem o direito de ocupar o espaço das notícias com tanto marketing". Perguntei se ele não acha que o próprio atlas é uma notícia, assim como os sucessivos recordes de tiragem que o jornal vem batendo. "Sim", respondeu o professor. "Mas não dá para ficar repetindo todos os dias a mesma coisa, como se ela fosse a mais importante do mundo."

Também na minha opinião, a Folha exagera -mas não mais do que em situações anteriores, como quando lançou o Folhão, no final de 92, ou fez um caderno especial para contar como seria a cobertura de sua equipe na Copa do Mundo, três meses atrás. Faz parte da estratégia da Folha transformar-se em notícia e martelar essa notícia dias a fio nas páginas do jornal. Não se pode dizer que não tem dado certo. Mas há leitores que se incomodam com isso, vendo até uma certa inversão de valores, para não falar em arrogância, na atitude do jornal.

É difícil rebater os argumentos desses leitores, ainda mais quando eles são palpáveis -como a edição de sexta-feira do caderno Esporte, que saiu com quatro páginas, sendo apenas duas e meia de noticiário. "Parece que tenho de me conformar com o fato de que notícias estão sendo cortadas do jornal para dar espaço para a promoção do atlas", desabafou um leitor também de São Paulo, estudante de direito. Na edição de sexta-feira, ele procurava informações sobre a possível interdição do autódromo de Monza, na Itália, na prova de Fórmula 1 marcada para 11 de setembro. "Tive que comprar o 'Estado"', arrematou o leitor, referindo-se ao principal concorrente da Folha. A notícia que ele procurava estava lá.

A secretária de Redação Eleonora de Lucena acha que não há exagero no jornal, nem concorda com os leitores que estão se sentindo prejudicados. "A publicação do atlas é notícia e as reportagens que aparecem sobre ele são de serviço, em sua maioria. O espaço está sendo usado para informar melhor o leitor sobre esse lançamento da Folha, e o jornal tem mesmo que dar orientações e explicações sobre como vão ser os fascículos, como devem ser encadernados, coisas assim. O leitor está procurando por isso."

Não há como negar que a publicação de um atlas com o alto nível de qualidade que esse tem ou o salto na tiragem do jornal, que já era o maior do país, são notícia. Mas o leitor se aborrece quando ela é exaustivamente repetida no jornal dia após dia, durante algumas semanas. Doze deles protestaram até agora e um, o estudante de direito, foi direto ao ponto: "Será que vamos ter de aguentar isso por 19 semanas?" Sinceramente, espero que não.

De qualquer maneira, a Folha cumpriu seu objetivo: fez o chamado barulhão com o atlas e contabiliza que, depois de passada a novidade, a tiragem do jornal pode se estabilizar muito perto de 1 milhão de exemplares aos domingos. Mais do que isso, o jornal deu mostras, com um editorial publicado no domingo passado, que sabe que o tamanho de sua responsabilidade cresceu junto com o número de exemplares. "Quanto maior a evidência em que um jornal se coloca, mais severa deve ser -e de fato é- a exigência de seus leitores em termos de precisão e credibilidade", escreveu o editorial. "E quanto mais numeroso for o contingente de leitores dispostos a honrar um jornal com sua escolha, mais cuidadosa deve ser a apuração dos fatos, mais criteriosa a forma de apresentá-los na edição do dia seguinte e mais determinada deve ser a disposição de corrigir falhas ou admitir erros." Essa é a boa notícia de todo este episódio.

A operação-relâmpago montada pelo "Jornal da Tarde", do mesmo grupo que edita o "Estado", para atrapalhar o lançamento do atlas da Folha na semana passada -encartando um atlas no "JT" do sábado, 13 de agosto-, aparentemente não chegou a fazer cócegas. E resultou constrangedora. O atlas do jornal concorrente é modesto, pouco atraente e, pior, tem erros. Vários deles foram apontados em telefonemas e cartas para a ombudsman da Folha (o "Estado" não tem ombudsman, nem o "JT"; por essa razão, orientei os leitores a procurarem a redação de ambos os jornais). Ainda que informe em seu prefácio que se trata de uma edição atualizada (é de 94), e que ela inclui "as recentes alterações ocorridas na Ásia, Europa e no próprio Brasil", o atlas do "JT" informa, por exemplo, que a moeda em circulação no Brasil é (acredite) o cruzeiro.

O Brasil conheceu o cruzeiro real em 1º de agosto de 93. O real, em 1º de julho deste ano. O atlas do "JT" parou no tempo.

No domingo, 31 de julho, comentei nestas "Notas" dois casos ocorridos na Folha e não dei minha opinião sobre eles. Também não informei qual era a opinião da Redação. Alguns leitores ficaram incomodados com isso e pediram esclarecimentos. Querem saber que fim levaram os casos. Aqui vão as respostas.

Sobre a reportagem com o título "Marido solteiro apaga vestígios da farra", publicada no caderno São Paulo (Cotidiano para quem recebe a edição nacional), contei que havia recebido várias reclamações de leitores (leitoras em sua maioria). A reportagem foi chamada até de "cafajeste", porque mostrava (com ilustrações) como fazem os maridos "solteiros" durante as férias para apagar as marcas das aventuras extraconjugais na volta da mulher e dos filhos. Os leitores viram isso como "dicas" para enganar a mulher.

"A reportagem não teve essa intenção de dar dicas", esclarece a secretária de Redação Eleonora de Lucena. "Seu objetivo era apenas registrar um tipo de comportamento sem entrar em juízo de valores. O jornal não disse se aquilo é ou não errado, apenas registrou que acontece". Quem reclamou já havia recebido essas mesmas ponderações feitas pela ombudsman. Concordo com Eleonora: a reportagem não sugeria que se adotasse qualquer comportamento ou mesmo fazia seu julgamento. Deixava essa (difícil) missão para o leitor.

O outro caso ocorreu no caderno TV Folha: numa reportagem sobre o "trash" (lixo) da televisão, o repórter Sérgio Dávila registrou que a apresentadora Ofélia tem uma "'negrinha' auxiliar" em seu programa de receitas culinárias. Diversos leitores que reclamaram viram preconceito do repórter e do jornal no uso do "negrinha".

"A expressão foi escolhida exatamente para tornar evidente o preconceito do programa, daí o uso das aspas no texto original", explica o repórter. "Procurava reproduzir, de maneira sintética, o pensamento dos responsáveis pelo programa: era necessária a figura de uma auxiliar de Ofélia; é óbvio (infelizmente) que eles optaram por uma mulher de raça negra, o estereótipo vigente na televisão. Se os leitores não entenderam a sutileza do texto, a falha pode ter sido do repórter."

Concordo com Dávila: suas explicações deixam ver que, em vez de veicular o preconceito, ele tentava mostrá-lo aos leitores. Mas o texto, sintético até demais, maquiou suas intenções. Seus argumentos foram enviados a todos os leitores que reclamaram e parecem ter convencido: nenhum deles escreveu ou telefonou de volta.


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