Folha de S. Paulo


O país dos homens iguais

O episódio da superbagagem da delegação da CBF continua produzindo barulho, mas até agora a imprensa não revelou o fundamental sobre aquelas 17 toneladas de quinquilharias eletrônicas em sua maioria: a quem pertencem? Vamos aos fatos: na segunda-feira, durante o embarque da delegação nos EUA, o repórter Fernando Rodrigues, da Folha, percebeu que algo estava errado com as malas. Acompanhou o transporte dos volumes, anotou os nomes escritos nas caixas que estavam a seu alcance e o que elas continham, e produziu uma reportagem para a edição de terça-feira contando que a delegação trazia de volta muito além do limite permitido na lei para passageiros normais.

Na quarta-feira, toda a imprensa estava atrás da história. Ocorre, porém, que a bagagem virou "da seleção", e toda a mídia passou a falar "dos jogadores" que deixaram o aeroporto do Rio sem pagar impostos. O caso é mais grave do que isso: havia, e a própria imprensa publicou sem se dar conta do absurdo, 96 pessoas no avião da CBF que desembarcou no Rio. Eram 40 membros da delegação, incluídos aí os 22 jogadores tetracampeões, mais 56 "convidados". As 17 toneladas de bagagem, portanto, não são dos jogadores, mas deles, da comissão técnica da CBF e seus "convidados". O que só piora o caso para a CBF e seus "convidados".

Aliás, quem são eles, os "convidados"? A imprensa ainda não se ocupou de levantar a lista dos privilegiados que, além de viajar de graça no avião da CBF, também passaram pela alfândega sem deixar um só tostão de imposto nos cofres públicos. Agora que alguns jogadores (na Folha de ontem, Jorginho, e em "O Estado de S.Paulo", Mauro Silva) se dispõem a pagar o imposto devido sobre as compras no exterior, é ainda mais urgente investigar e publicar o nome dos "convidados" e denunciar os impostos que, eles também, devem. Afinal, somos ou não somos todos iguais diante da lei?

Quando um jornalista é ofendido no desempenho de suas funções, ele deve ou não responder à altura? A pergunta procede especialmente nesta semana, diante de dois episódios protagonizados pelo candidato do PMDB à Presidência, Orestes Quércia, e pelo tio do presidente da CBF, Marco Antonio Teixeira. O primeiro chamou o coordenador de Política do jornal "O Estado de S.Paulo", o jornalista Rui Xavier, de mentiroso, caluniador e safado durante o programa "Roda Viva" de segunda-feira, pela TV Cultura de São Paulo. O segundo chamou o repórter Luiz Antonio Prósperi, também do "Estado", de babaca durante a festa da vitória da seleção em Los Angeles.
Xavier se conteve boa parte do tempo enquanto Quércia o xingava (durante um debate com o presidenciável, o jornalista perguntou se seus baixos índices nas pesquisas se devem às suspeitas sobre o enriquecimento do candidato). Mas devolveu os insultos a partir de certo ponto, e o que era uma jogada política de Quércia para "aparecer" diante do eleitorado, como fizeram circular seus assessores, se transformou num constrangedor bate-boca transmitido ao vivo. Prósperi fotografava a festa dos dirigentes da CBF no hotel da seleção, em que vários deles estavam embriagados e xingavam jornalistas, em especial da imprensa paulista, por ter "torcido contra" o time. Ao ser insultado por Marco Antonio Teixeira, respondeu com um "babaca é você", tomou um soco, deu outro e a festa terminou ali.

Em caso de agressão física, como aconteceu com Prósperi, não resta alternativa: é bobagem querer que existam heróis capazes de apanhar, quietos, em nome da causa da imprensa (ou do jornal em que trabalham). O homem tem um sentido de autopreservação que acende uma luz vermelha nessas horas. Mas no caso de agressão verbal, minha opinião pessoal é de que ambos erraram. Quércia xingou o "Estado", e não exatamente Rui Xavier (ainda que dirigisse a ele seus impropérios). Teixeira, embriagado, atacou a imprensa paulista, e não exatamente Prósperi, ainda que tenha lançado em sua direção o insulto.

Nessa hora, o autocontrole do profissional tem que falar mais alto que sua honra ou vaidade pessoal: é preciso suportar calado (é difícil, reconheço; já aconteceu comigo), registrar a cena e contar o que se passou para os milhares de leitores que não puderam presenciá-la. Um repórter em campo é o representante do jornal em que trabalha, e deve ter claro que a maior parte das agressões que receber (idem as deferências, privilégios e eventualmente até elogios) terão sido dirigidos a esse jornal. O leitor tem o direito de conhecer todos, de agressões a privilégios, e o jornalista sempre dispõe da Justiça para recorrer quando achar que os limites foram ultrapassados. Democracia funciona assim, com homens iguais diante das leis.

O presidente da CBF desembarcou no Brasil atacando a "imprensa paulista" (não citou nomes nem veículos) pela cobertura da Copa. Como vingança, fez o que pôde para atrapalhar um desfile dos jogadores por São Paulo. Com isso, puniu os torcedores paulistas e até ontem, quando escrevi esta coluna, ainda não se sabia se o tal desfile ocorrerá em 29 de julho.

Ricardo Teixeira, cuja biografia dispensa apresentações, demonstra com seu gesto que não consegue conviver com a imprensa livre e crítica -aquela imprensa que gostou, é claro, da conquista do tetra, mas não acha que os jogadores ou o próprio Teixeira sejam seres acima do bem e do mal por causa disso, nem que os problemas do país estão resolvidos com a chegada da taça da Fifa em solo nacional. Mais: aquela imprensa que sabe (e escreveu) que a conquista do tetra foi sofrida, terminou num constrangedor 0 a 0 e pela primeira vez na história das Copas se resolveu nos pênaltis. Ou seja, muito diferente do show de bola no México, em 1970.

O melhor dessa história é que ela motivou muitos leitores a escrever para o Painel do Leitor e para a ombudsman pedindo a mesma coisa: que a imprensa se mantenha crítica não só em relação à seleção, a Parreira e ao tetra, mas também em relação a Ricardo Teixeira. A grita contra os privilégios alfandegários deles todos é outro sintoma de que o leitor (mais do que isso, o cidadão brasileiro) quer um Brasil diferente. De homens verdadeiramente iguais diante da lei, e com uma imprensa verdadeiramente crítica e livre. Quem não estiver preparado para ambas as coisas, continuará produzindo espetáculos deprimentes como o de Ricardo Teixeira ao impedir que a seleção desfilasse em São Paulo.


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