Folha de S. Paulo


Dois momentos de um jornal

A imprensa tem um papel fundamental nas sociedades modernas e cada vez mais complexas. É o canal por onde transitam idéias, novidades e informações -e quanto mais idéias, novidades e informações ela conseguir veicular, discutir e avaliar, quanto mais conseguir refletir a sociedade em que está mergulhada e revelar o que se passa com ela, melhor será. Grosso modo, o que está na imprensa está no mundo, nessas sociedades.
Por essa razão, é importante que a Folha tenha aberto espaço em sua edição de quinta-feira -um bom espaço, diga-se- para que o médico Aníbal Faundes contasse, num ato de coragem, que o Centro de Assistência Integral à Saúde da Mulher, dirigido por ele na cidade de Campinas (SP), faz abortos quando constata que o feto não tem condições de sobrevivência. São abortos ilegais, que o médico chama de éticos. Uma espécie de eutanásia prévia de alguém sem chances de viver.

O Caism é ligado à Unicamp, uma das mais respeitadas universidades brasileiras. Fica numa grande cidade do Estado mais rico do país. As mulheres atendidas ali, de graça, têm à sua disposição tratamentos que, no Brasil, frequentemente só alcançam quem tem dinheiro. É, enfim, uma exceção sob todos os ângulos. A Folha não explicou ao leitor, mas aparentemente tropeçou nas declarações de Faundes quando investigava a venda no mercado paralelo de Campinas de um remédio, o Cytotec, usado como abortivo.

Com a entrevista do médico em mãos, e sua autorização (publicada também pelo jornal) para reproduzir o que ele havia dito, a Folha abriu uma página inteira da edição de quinta-feira para o assunto. Uma boa página: tinha informações sobre os casos de má-formação na população mundial (4% dos nascimentos), um perfil do Caism (um dos maiores centros de atendimento à mulher no país; 3 mil partos no ano passado), a legislação brasileira sobre aborto (permitido apenas em casos de estupro ou de risco de vida para a mãe) comparada com a de 14 outros países e os efeitos do Cytotec. Com todos os problemas que conservava (a declaração mais importante do médico, a de que o Caism faz abortos, estava no finalzinho da entrevista, por exemplo), a Folha fez uma boa reportagem. Mais importante do que isso: não opinou, não tendeu para qualquer um dos lados, não "sensacionalizou" o caso. Foi equilibrada. Como o bom jornal que quer ser, a Folha abriu uma nova frente de discussões nesse território espinhoso em que se fala de aborto no Brasil e, como Faundes, pode ter contribuído decisivamente para a reavaliação das leis que cercam o assunto simplesmente retratando a verdade. Por tudo o que já ouvi dos leitores nestes nove meses como ombudsman, imagino que o jornal que eles querem seja parecido com essa Folha da quinta-feira que passou. Um jornal que, aí sim, "não dá pra não ler".

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Mas se teve sensibilidade jornalística para acertar nesse, a Folha errou -feio- em outro caso. No domingo, o Brasil conquistou um título inédito, o de campeão mundial de basquete feminino, numa partida contra a temida seleção da China. Placar final: inacreditáveis 96 a 87. No mesmo domingo, a seleção de futebol bateu o fraco time de El Salvador no último amistoso antes da Copa. Placar final: um protocolar 4 a 0. No jornal de segunda-feira, a porção superior da Primeira Página (a área nobre do jornal) chegou aos leitores dominada por uma foto de um lance qualquer da partida da seleção de futebol -uma partida sem importância. Para as meninas do basquete, que além do título inédito acabavam de garantir uma vaga na Olimpíada de Atlanta em 96, o espaço que sobrou ficava abaixo da dobra, e era menos da metade daquele ocupado pelos garotões do futebol. Até ontem, 20 leitores protestaram contra essa escolha do jornal. "Um amistoso contra pernas-de-pau não merecia mais do que uma notinha na Primeira Página. Hortência e Paula, que estão deixando a seleção depois de colocar o Brasil na Olimpíada, mereciam a manchete do jornal", resumiu um irado leitor de São Paulo. O tom dos protestos foi quase sempre o mesmo. Depois de Senna, Hortência talvez seja a atleta (na ativa) mais querida e conhecida do país, e fora dele. Mais: um título inédito no basquete feminino é sempre um título inédito. O jornal parece ter demorado para acreditar que as meninas tinham chance (a vitória contra os EUA por 110 a 107, no sábado, que colocou o time pela primeira vez numa final, foi noticiada numa quase invisível notinha na capa do domingo). Enfim, a Folha perdeu duas boas oportunidades: a de valorizar uma notícia importante, e a de atender aqueles (muitos) leitores que acham que esporte é mais do que seleção brasileira de futebol.

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Em compensação, para os leitores que adoram futebol o jornal dá um show: fez os cinco fascículos da História das Copas (o último saiu no domingo passado), o Guia da Copa que circulou na quarta-feira, Tudo sobre a Copa que saiu na quinta, mais o diário Copa 94 que, desde sexta-feira, ganhou diagramação nova, bonita e mais fácil para o leitor. Hoje, dá bandeira e álbum de figurinhas nesta edição. Poucas reclamações, a maior parte delas para apontar pequenos erros, têm sido feitas à ombudsman sobre esses cadernos especiais. No lugar delas, o leitor tem preferido elogios à Folha. Talvez ele não saiba, mas o planejamento que permitiu ao jornal publicar esses suplementos e estar nos EUA com o fôlego atual começou a ser feito há um ano. Planejamento, aliás, tem sido um dos pontos mais fortes da Folha: quando terminar a Copa, a equipe de Esporte certamente já vai começar a pensar em Atlanta-96. Tomara que, dessa vez, preste mais atenção às meninas do basquete. Porque o que pegou o jornal de calças curtas foi exatamente o fato de que não se podia planejar que, tão cedo, o Brasil fosse ser o campeão mundial de basquete feminino.

PESOS IGUAIS, MEDIDAS IDEM
Na semana passada, o diretor-executivo da Sucursal de Brasília, Josias de Souza, e a editora de Política da Folha, Paula Cesarino Costa, fizeram publicar ao lado da coluna da ombudsman uma réplica ao texto que saiu em 5 de junho, "Dois pesos e duas medidas". Não tenho intenção de que isto seja uma tréplica, nem quero manter a polêmica (ainda que, como manda a praxe da Folha, possa responder à Redação sempre que achar necessário; da mesma forma, a Redação tem o direito de responder à ombudsman).

Ocorre, entretanto, que algumas observações sobre a réplica precisam ser feitas. O caso, se o leitor não se lembra, resumo aqui: na coluna de 5 de junho, escrevi que a Folha tem acessos de "fernandohenriquismo" na cobertura das eleições. Josias e Paula responderam reafirmando o apartidarismo do jornal. Apresentei como exemplo a cobertura da campanha de rua de Lula e FHC na quinta-feira, 2 de junho, comparando o tom do jornal em cada uma. Eles rebateram com exemplos de 12 outras reportagens publicadas na Folha.

Mas Josias e Paula começam errando. Jamais acusei a Folha de ser "fernandohenriquista", como eles escreveram na réplica. Vamos ao texto que gerou este caso: "Em várias destas colunas de domingo, já escrevi que a Folha pratica, aqui e ali, `fernandohenriquismo' em seu noticiário." Era a primeira frase de minha coluna, ou o lide, como se diz em jornalismo. Jamais insinuei que a Folha fosse partidária, pelo contrário. Vamos ao texto, de novo: "(...) A Folha é um jornal apartidário, faz questão desse rótulo, (...) o que é louvável. Até o momento em que escrevo esta coluna, nada nem ninguém faz supor que a Folha vá se permitir apoiar um candidato às eleições." Este era o segundo parágrafo.

Josias e Paula afirmam, na réplica, que não ouvi o "outro lado", ou seja, a Redação, para que ela desse sua opinião no caso. Discordo. As observações que o leitor conheceu na coluna de domingo, 5 de junho, estavam na crítica interna daquela quinta-feira, 2 de junho, em que a Folha escorregou na cobertura da campanha de Lula e FHC. A Redação se absteve de respondê-las (poderia fazê-lo a qualquer momento, como manda o Manual), só se preocupando com isso quando elas se tornaram públicas. O silêncio entre a quinta e o sábado, dia em que escrevo minha coluna, me fez crer no velho "quem cala, consente".

Josias e Paula dizem, ainda, que cometi uma injustiça contra o jornal ao apontar seu "fernandohenriquismo". Se é assim, os leitores que já escreveram ou telefonaram reclamando do mesmo fenômeno são também injustos com a Folha. São muitos, e seus protestos têm sido sistematicamente enviados à Redação -assim como os protestos de quem acha que a Folha é "lulista", "quercista" e por aí vai. Só na semana passada, 27 leitores manifestaram à ombudsman apoio pela coluna que gerou este caso, e vários deles listaram outros exemplos de "fernandohenriquismo" no jornal. Quatro escreveram para dizer que estou errada; dois desses disseram que revelo simpatias por Lula. Suas cartas também foram remetidas à Redação.

Josias e Paula me convidam para um mergulho nas edições da Folha, de modo a ver como o jornal é equilibrado diante de FHC. Pedem que eu tenha fôlego para chegar até a edição de 14 de maio. Fui além, até a de 10 de abril, quando a Folha saiu com a manchete: "Lula e FHC lideram pesquisa." O petista tinha 36 pontos; o tucano, 20. Na coluna de domingo, 17 de abril, chamei essa manchete de "fernandohenriquista"; nada me foi respondido. Idem na semana anterior, quando cravei o neologismo pela primeira vez, protestando (em nome dos leitores, sempre) contra a hierarquização do noticiário eleitoral. Poderia ir até 17 de março e sua manchete "FMI dá apoio a Fernando Henrique" -coisa que jamais ocorreu; o FMI soltou, no dia anterior, uma nota protocolar de apoio ao plano de estabilização do governo, não a seu ministro da Fazenda. Escrevi isso na crítica interna e na coluna de domingo, 20 de março. Fiquei sem resposta.

Continuo achando que a Folha protagonizou mais episódios de "fernandohenriquismo" do que qualquer outro "ismo" na cobertura destas eleições. Nas duas últimas semanas, entretanto, o fenômeno desapareceu. Talvez seja efeito da atuação da ombudsman, mas prefiro achar que a Redação reencontrou seu distanciamento crítico. Se o "fernandohenriquismo" continuar sumido, não vejo razão de voltar ao assunto ou cultivar a polêmica. Ao leitor, porém, prometo a mesma vigilância que ele tem mantido sobre o jornal.

Por fim, Josias e Paula escreveram que tomei "a defesa dos leitores simpatizantes do PT e, por consequência, do próprio candidato petista" na coluna de 5 de junho. Bobagem. Desafio qualquer um, dentro e fora da Folha, a encontrar uma frase em que eu tenha defendido Lula, o PT ou os petistas nas críticas internas ou nas colunas de domingo. Não escrevi que o jornal deveria aliviar as críticas contra Lula (o que vários leitores petistas sugerem, mas seria mau jornalismo), e sim reforçá-las contra FHC. O que defendi, sempre, foi o uso de pesos iguais e medidas idem em relação a qualquer fato, entidade ou pessoa, Lula e FHC e seus partidos incluídos. Não é por outra razão, quero crer, que a Folha arrolou em sua defesa, no processo que Lula move contra o jornal baseado na Lei de Imprensa (o caso da doação de verbas da CUT para o partido), a coluna da ombudsman de 28 de novembro. Escrevi ali que as denúncias da Folha contra o PT são "irretocáveis como jornalismo".


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