Folha de S. Paulo


O leitor no lugar do ombudsman

A coluna de hoje não foi escrita por mim, mas pelos leitores que se manifestaram ao longo da semana (53 até a noite de sexta-feira, um recorde em se tratando de um só assunto) fazendo análises e observações acerca da cobertura dada pela imprensa à morte de Ayrton Senna. Na maior parte das vezes, concordo com o que eles escreveram ou disseram pelo telefone, e acho importante reproduzir algumas de suas idéias aqui para mostrar que o leitor não é bobo (nem engole qualquer coisa como notícia).

Mesmo surpresos com a morte do piloto, esses leitores souberam separar o que era boa informação de informação piegas, inútil ou apelativa, ou ainda mera desinformação. Fizeram o papel de ombudsman da mídia melhor do que eu faria nesse caso, porque o acompanhei de longe (estava nos EUA, participando do encontro anual de ombudsmen de imprensa, e li os jornais com uma semana de atraso: a essa altura, já não tinha uma opinião isenta sobre a cobertura e, por isso, prefiro as análises dos leitores, feitas a quente).

"De cara deu para detectar, de novo, a falta de pauteiros e repórteres com boa informação sobre assuntos mais técnicos. A palavra `telemetria' era largada como se qualquer leitor soubesse o que isso significa -duvido que 10% dos repórteres saibam o que é, realmente." (Fernando Albrecht, Porto Alegre, RS).

"Apesar do grave acidente de Barrichello, na sexta (29 de abril), e mesmo com a morte, no sábado (30 de abril), de Ratzenberger, existiu mais do que omissão. Afinal, o morto era um `inexperiente' austríaco. `Morte não assusta Barrichello' foi o título de um box na Folha. Em `O Estado de S.Paulo', Christian Fittipaldi lamentava. Não a morte do austríaco', mas não ter conseguido melhor colocação no grid de largada.

"Como tudo é rápido na F-1, algumas horas após a morte de Senna tudo mudou. Os carros não têm segurança, o traçado de Imola é absurdo, o asfalto está repleto de irregularidades, os dirigentes são totalmente irresponsáveis, os cartolas só pensam em dinheiro, essa corrida nunca poderia ter sido realizada depois de tantos acidentes. É doído dizer, mas se a morte de Roland Ratzenberger tivesse um `marketing' adequado na imprensa, talvez Senna ainda estivesse vivo." (Claudinei Nacarato, Riberão Preto, SP).

"Levados, talvez, pela emoção ou, pior, pela necessidade (ou obrigação) profissional de escrever sobre o assunto, os jornalistas nos bombardearam com textos piegas. Numa batalha ridícula, os apresentadores de TV disputavam quem era capaz do texto mais comovente. Venceu o Aqui Agora: uma apresentadora chegou a chorar no programa do dia 6 de maio, sexta-feira. Os jornais impressos não ficaram atrás. `Senna foi o herói do cidadão brasileiro que não tem o que comer, que não tem acesso à educação', ou `estava acima do bem e do mal' foram coisas que cheguei a ler. Qual é a função da imprensa, comover ou noticiar?" (Marcos Caldeira Mendonça, Itabira, MG).

"A Rede Globo exagerou no `Fantástico' (de 1º de maio). Reportagens desnecessárias feitas apenas para emocionar os entrevistados e, com isso, os telespectadores." (André Dantas da Silva, São Paulo, SP).

"Lamentável o caráter apelativo das reportagens sobre a morte de Senna. A Folha não escapou à maioria: fotos enormes de fãs chorando, incentivando a emoção. Uma pena!" (Cleide Abílio Ferreira Pinto, Belo Horizonte, MG).

"A Rede Globo deu uma bola fora: no velório de Senna, a família pediu para ficar 30 minutos sozinha, sem nenhum repórter. Mesmo assim, uma câmera da Globo continuou a apresentar imagens, mostrando bem de perto os rostos dos familiares de Senna. Ficamos realmente muito surpresas ao ver que se tratava de uma câmera oculta! Como a Globo pôde ter tamanha desconsideração?" (Adriana Gruvo, São Paulo, SP).

"Houve grande sensacionalismo na cobertura e muita coisa ficou sem informação. Por exemplo, não se sabe por que a autopsia demorou tanto. Se a demora fosse do IML do Rio ou de São Paulo, o malho seria uma grandeza." (Ivan Vasques, Rio de Janeiro, RJ).

"Na edição de quarta-feira, 4 de maio, a Folha publicou com destaque a notícia sobre a extrema-unção de Senna. No texto aparece escrito que Leonardo, seu irmão, teria pedido a extrema-unção porque o piloto era `um grande católico'. No mesmo dia, as emissoras de TV mostraram no velório de Senna um culto evangélico. Quem errou: a imprensa ou o irmão do piloto?" (Luiz Antonio Galhardi, Santo André, SP).

"No caderno especial `Vida de Senna' (domingo, 8 de maio), a Folha trata com extrema leviandade o relacionamento do piloto com Xuxa. Quanto a Adriane Galisteu, na edição da quinta-feira, 5 de maio, a Folha diz que a moça, aos prantos, foi consolada por Leonardo Senna no velório. Na edição subsequente, diz que Adriane foi expulsa do furgão da família Senna, ao final do sepultamento. E o repórter não dá detalhes, deixando assim a idéia de mais uma fofoca impressa -se não me engano, isso é coisa da imprensa marrom." (Laerte Pereira da Silva Junior, João Pessoa, PB).

"O que faltou foram reportagens que respondessem por que eu e todo o povo brasileiro nos tornamos carpideiras. Psicólogos, antropólogos e sociólogos poderiam ter nos ajudado a entender esse luto nacional". (Maria Lúcia M. de Arruda Peres, São Paulo, SP).

"Só entre meus parentes e amigos, há muitos que achavam o Senna um cara antipático e chato. Outros ainda não o consideram como `melhor piloto de todos os tempos', preferindo Fittipaldi ou Piquet. Mas ninguém na imprensa ousou tocar nesse assunto. Com ele, morreram também seus defeitos". (Regina Belletato Fonseca, Santo André, SP).

"Gostaria de manifestar meu repúdio à Folha por ter dado espaço para um artigo (`O defeito que matou Senna', edição de terça-feira, 3 de maio) de mau gosto. Gostaria também de informar a seu autor, Janio de Freitas, que ele perdeu pontos comigo por seu artigo imbecil." (Gilberto Lorenzon, Vinhedo, SP).

"Imagino que muitos leitores tenham escrito para protestar contra o artigo de Janio de Freitas. Certamente não entenderam o que foi escrito. Preferem a obviedade piegas que tomou conta dos órgãos de comunicação e, eu diria, de nós todos.". (Luiz Fernando Kajita, Campinas, SP).

"Na terça-feira (3 de maio), já não aguentava mais. A mídia pegou um sentimento existente e ajudou a transformá-lo na loucura que foi. Na mesma semana morreu Mário Quintana: veja você o contraste nas coberturas." (Sérgio Pinheiro Lopes, São Paulo, SP).

"Queria saber da política brasileira e não havia nada que pudesse me informar sobre a lenta revisão constitucional ou a cassação de crápulas políticos. Aliás, soube com muito sacrifício que o deputado Ricardo Fiuza tinha sido absolvido pela Comissão de Justiça do Congresso." (Marcelo Simões dos Reis, Brasília, DF).

"Não destaco nenhum dos jornais, pois todos mantiveram praticamente a mesma linha, com os mesmos conteúdos: fotos, muitas fotos, artigos de pessoas e políticos conhecidos falando do piloto e do acidente, ataques aos culpados `eleitos'. Cadernos especiais e fofocas, muito diz-que-diz, e nada li que diferenciasse um jornal do outro, que pudesse destacá-lo dos demais. Pareciam todos saídos da mesma redação." (Fábio Nogueira Jr., São Paulo, SP).

"Lembrei-me do `Guia da F-1', de 20 de março, na Folha. Dizia antijornalisticamente o redator: `É o que vai acontecer em 94. O trio Williams-Renault-Senna vai conquistar o título fácil. Senna tem se esmerado em declarações que descartam o favoritismo absoluto. Para ele, sua equipe foi a que mais perdeu com as novas regras. Schumacher deve beliscar uma ou outra vitória em 94. Quem acredita em algo mais do que isso, também acredita que Papai Noel existe'. Na época foi irritante, e hoje também não deixa de ser.

"O fato é que a imprensa teve que acender uma vela a Deus e outra ao diabo, porque com a cobertura sensacionalista há quem a acuse de `oportunismo'. Mas caso na segunda-feira, 2 de maio, (e também na terça, na quarta...) não tivéssemos encontrado no jornal total redenção ao Ayrton, para nossa própria catarse pessoal, não perdoaríamos o jornal, não nos identificaríamos com o jornal." (Manoel J.P. Almeida, Patos de Minas, MG).

Peço desculpas aos leitores cujas observações, por serem coincidentes com as publicadas, não foram aproveitadas nesta coluna. Tentei colher uma amostra entre as manifestações que recebi, e pretendo não ter deixado nada de fora. Mas podem todos ter certeza de que suas cartas foram lidas com atenção e remetidas à direção do jornal, para análise. O mesmo ocorreu com os telefonemas, que foram relatados minuciosamente à direção. Há, nessas cartas e telefonemas, grandes lições de como seria a imprensa que o leitor gostaria de ter. Espero que a Folha não despreze a oportunidade de aprendê-las.

Mesmo porque, até agora, a imprensa não conseguiu responder: como foi, e onde foi que Ayrton Senna morreu? Continua sendo um mistério.


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