Folha de S. Paulo


Detalhes nada pequenos

Nesta quarta-feira, a seleção brasileira embarca para os Estados Unidos e começa a campanha pela conquista, quem sabe, de um tetra. A imprensa está entusiasmada (de novo) com essa possibilidade, e o espaço ocupado pelo assunto nos jornais, na TV e no rádio cresceu na última semana. Até a "Veja" sucumbiu, e circulou com Romário, o craque "casca grossa" (como a revista chamou), na capa. Há um clima de "vai lá, Brasil" no ar.

Retomei a pasta que guarda as colunas dos ombudsmen que me antecederam aqui e encontrei uma de Caio Túlio Costa, publicada em 8 de julho de 1990, em que ele faz uma pequena análise de como a Folha cobriu a Copa daquele ano. Caio lembra que, criticada e ironizada pela introdução das estatísticas na Copa de 86, a Folha foi largamente imitada em 90, quando os números viraram sensação nos jornais e na TV, especialmente. "O jornalismo brasileiro descobriu um bom aliado para embasar textos analíticos, um ajudante para comentários e conclusões", escreveu ele.

Mais quatro anos se passaram, e os números traduzidos em quadros, tabelas e gráficos recheiam a maior parte das reportagens de esporte em toda a imprensa (há até uma certa obsessão por eles que alguns leitores da Folha criticam). Números, portanto, não são mais novidade. Ocorre, então, que a imprensa precisa encontrar um diferencial nesta cobertura, para que os jornais, as revistas, os programas de rádio e de televisão não pareçam "todos saídos de uma mesma redação", como escreveu um leitor na semana passada (publiquei sua carta aqui), a respeito da cobertura da morte de Ayrton Senna. O que fazer?

A resposta, imagino eu (e alguns leitores com quem conversei concordam), está nos detalhes. Eles vão fazer a diferença. Quer um exemplo? Semana passada, os quatro maiores jornais do país, mais o "Jornal Nacional" da Rede Globo, dedicaram um bom espaço para o acompanhamento dos testes físicos que os jogadores estavam fazendo. A julgar pela importância que deram aos tais testes, e pela quantidade de repórteres destacados para cobrir o assunto, eles devem ser fundamentais para a escalação do time, a definição das táticas e o sucesso da seleção nos EUA, certo?

Aos leitores, entretanto, poucos detalhes foram oferecidos. Desde a terça-feira, quando começaram os testes e a Folha noticiou na Primeira Página, insisti na crítica interna que o leitor precisava saber o que são eles, como são aplicados, o que medem, para que servem e que respostas dão. O jornal fez suspense, ainda que tenha dedicado nada menos que três capas do caderno de Esporte aos testes da seleção. Na quinta-feira, apareceu uma pequena reportagem também em Esporte, que contava superficialmente o que eram os testes e qual o desempenho esperado neles. Outros jornais nem isso fizeram. Na verdade, fizeram todos as mesmas reportagens, que pareciam saídas da mesma redação.

Na sexta-feira, terminada a euforia com os testes físicos, a Folha publicou reportagem com chamada na Primeira Página dizendo que "Dieta da seleção é criticada". O texto informava que a recém-contratada nutricionista, uma moça que não sabe se vai aos EUA com o time nem se tem força para alterar hábitos antigos dos atletas, criticava genericamente a introdução do paio, da carne-seca e do toucinho nas refeições, quaisquer refeições. A mesma reportagem deixava claro que a moça não tinha notícia de que paio, carne-seca e toucinho já estão embalados, prontos para viajar com os craques para os EUA.

O que foi que a reportagem não deu aos leitores? Detalhes, de novo. Começou e terminou sem dizer o que comem os atletas, como comem e por que comem -ou ainda, quem decide o que eles comem. Começou e terminou sem explicar por que razão a seleção, quando viajar na quarta-feira, vai levar 1,5 tonelada de comida de casa. O leitor ficou sem saber, mais uma vez.

A cobertura está no início, e há tempo de corrigir essas falhas. A Folha está preparando um caderno especial para acompanhar a seleção na Copa, e ele envolve o maior investimento já feito pelo jornal num único evento. Uma das coisas que se vai tentar é fazer com que as reportagens da Copa sejam atraentes mesmo para quem não gosta, ou não entende de futebol. Talvez esse seja o grande mérito da cobertura esportiva que fazem jornais e TVs americanos: eles se preocupam com uma dimensão, digamos, mais mundana do atleta e do esporte, e mesmo dentro de uma concepção de espetáculo transformam os jogadores em gente de carne e osso, com desejos, vontades e humor. E se são pródigos em estatísticas (de onde o leitor acha que a Folha tirou a idéia?), são também pródigos em histórias humanas, em informações complementares, em dados técnicos, em bastidores, em memória, em detalhes. Porque são eles, os detalhes, que fazem a diferença.

Acontece que não é só no caderno Esporte, nem apenas na cobertura da Copa que faltam detalhes no jornal. Como fiz há uns dois meses, quando propus aos leitores a "lição de casa" de encontrar e enviar à ombudsman os piores títulos do jornal (recebi dezenas de exemplos, todos eles encaminhados à Redação para análise e providências), renovo o convite. Que tal identificar na Folha os detalhes que ficaram de fora das reportagens? Aqueles que deixaram você, leitor, sem explicações importantes, e muitas vezes fundamentais para compreender a notícia. Anote os casos mais graves e mande para a ombudsman. Semana que vem, volto ao assunto.

Na terça-feira, o jornal "O Estado de S.Paulo" publicou a manchete "Relatório da CPI envolve Quércia". Segundo o jornal, o ex-governador, seu desafeto de anos, teria financiado a compra da Vasp para o empresário Wagner Canhedo usando dinheiro das fraudes contra a Previdência. Dois dias depois, uma minúscula Nota da Redação informava aos leitores que a reportagem estava "errada" e que o ex-governador "não foi citado no relatório da CPI". Apuradas as responsabilidades, o jornal demitiu uma repórter de sua sucursal em Brasília.

Não há como não dizer que as providências do "Estado" foram tão minúsculas como sua Nota da Redação. O jornal, que não tem por hábito corrigir as informações eventualmente erradas que publica, colocou nas ruas uma manchete -manchete!- a respeito de um homem público e, na hora de retificá-la, achou que bastava uma Nota da Redação perdida dentro da edição de quinta-feira. Ou bem a imprensa, toda ela, discute seu comportamento ético diante de erros, especialmente erros desse tamanho e natureza (política, quem pode dizer o contrário?), ou o leitor continuará sendo obrigado a engolir essas Notas da Redação, hipócritas como providências para restaurar a verdade.

Na coluna de Janio de Freitas da última quinta-feira, apareceu a notícia de que o Movimento pela Ética na Política está montando uma comissão de ombudsmen para "identificar os comportamentos antiéticos capazes de influir no eleitorado". A comissão vai divulgar boletins com análises dos meios de comunicação. Será, sem dúvida, providência inédita e muito necessária para enquadrar a cobertura das eleições em padrões mais elevados. Mesmo porque, na grande imprensa, só a Folha segue tendo o seu ombudsman há mais de quatro anos.

E já que toquei no assunto no texto lá de cima, o pior título da semana saiu em Esporte, na edição de sexta-feira: "Novo piloto da Williams deve sair em 6 dias". Perguntei na crítica interna: "Mas ele não vai exatamente entrar na equipe, no lugar de Senna?"

E já que o assunto é Senna, a imprensa brasileira até agora não apresentou as conclusões finais das investigações que estariam sendo feitas sobre as condições da morte do piloto. Até hoje, não se sabe se Senna bateu a cabeça no muro em Imola, ou se uma peça do carro atingiu seu capacete. O assunto sumiu dos jornais. Assim como sumiram informações sobre Karl Wendlinger, o austríaco que saiu da pista em Mônaco em estado de coma. A tragédia da Fórmula 1 não interessa mais aos jornalistas e, por extensão, aos leitores. É o que deve imaginar a imprensa, e se engana: na semana passada, recebi mais 32 manifestações sobre a cobertura da morte de Senna. No total, elas já são 85.

Na quinta e sexta-feira, a ombudsman estará fora do jornal, participando do seminário "Ombudsman, jornalismo e a volta da democracia" organizado pelo jornal "Hoy", editado em Assunción, no Paraguai, que tem seu primeiro ombudsman há sete meses. O seminário deve reunir outros ombudsmen que atuam na América Latina (presenças ainda não estavam confirmadas até ontem). Nesses dois dias, os leitores podem deixar recados na secretária eletrônica, que serão respondidos na volta.


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