Folha de S. Paulo


Uma trombada com a lei

No ano passado, e por consenso entre todos os partidos, foram alteradas as regras do jogo de financiamento das campanhas eleitorais. A idéia, boa por sinal, era empurrar as doações de campanha para a legalidade e torná-las passíveis de investigação, tudo para impedir que voltem à ativa personagens como os "caixas de campanha" (alguém pensou em PC Farias?), com a missão de arrecadar dinheiro para devolver em favores depois de apuradas as urnas.

Ocorre que nem essa aprovação de uma lei, por consenso entre todos os líderes partidários e com ampla cobertura da imprensa, encaixou as coisas em seus devidos lugares -e os abusos continuam. Que os jornais tenham descoberto isso apenas depois que Lula subiu num caminhão de som do Sindicato dos Metalúrgicos do ABCD, na terça-feira da semana passada, é também abuso -contra a inteligência do leitor.

Diz a lei, por exemplo, que os partidos só podem receber doações e fazer gastos de campanha depois que tiverem oficializado o nome de seu candidato numa convenção. Quanto às doações, difícil saber, porque mesmo com a lei há chances de que parte do dinheiro ainda escorregue para dentro dos comitês eleitorais por debaixo do pano. (Diga-se que a imprensa não tem sido firme em cobrar soluções para as eventuais brechas que a lei eleitoral deixou). Quanto aos gastos de campanha de praticamente todos os candidatos, não se pode fingir que não começaram muito antes das convenções, e foram transformados em caravanas e outdoors para ficar em dois casos mais evidentes. A imprensa se esqueceu de denunciar isso, ainda que tenha, aqui e ali, esbarrado no assunto.

Semana passada, depois do episódio do carro de som -e as desastradas e mal interpretadas declarações de Lula que se seguiram a ele-, a imprensa vestiu o papel de guardiã da lei e passou a exigir dos candidatos seu cumprimento fiel. Assim, de uma hora para outra. A Folha encontrou faxes passados pelo gabinete do senador Fernando Henrique Cardoso com a agenda do candidato Fernando Henrique Cardoso, ao contrário também do que recomenda a nova lei eleitoral. Produziu reportagem com destaque na Primeira Página sobre a "novidade", sem contar ao (e)leitor que essa pode não ter sido a primeira vez que ocorre, mesmo nesta campanha.

Depois que Lula utilizou o caminhão de som dos metalúrgicos, a Folha em especial passou a brandir a lei contra os candidatos e a escarafunchar irregularidades em suas campanhas. Passou a fiscalizar miudezas como o uso do fax do Senado com o empenho de quem tem nas mãos um escândalo de milhões de dólares. Tomou as declarações de Lula a respeito do uso do carro de som ("Entre a lei e a coisa justa e legítima, eu sempre disse que o justo e o legal é muito mais importante") como se fosse um anúncio de que, eleito, ele vai desrespeitar todas as leis vigentes no país.

Os candidatos estão trombando com a lei e a imprensa está trombando com os candidatos. É justo que a Folha investigue a aplicação da nova lei eleitoral pelos candidatos, mas o jornal deveria se ocupar também de avaliar se a realidade cabe dentro da lei -coisa que a imprensa ainda não fez. Caso contrário, o que se vai defender é a aplicação burra de uma lei recém-criada e ainda não testada na prática, mesmo que tenha sido aprovada por consenso entre todos os partidos. E essa defesa da aplicação burra pode levar ao desgaste da lei, e à consequente desculpa para que se reeditem em 94 os métodos de financiamento de campanha que foram usados em 89. Eis aí uma possibilidade que não interessa a você, (e)leitor.

Sobre as declarações de Lula nesse episódio, não há como negar que a imprensa fez a chamada tempestade em copo d'água. Na quinta-feira, quando deu manchete para o assunto, a Folha abriu sua página 1-6 dizendo que "Para Lula, a lei pode ser desrespeitada". Não havia em todo o jornal uma só frase de Lula afirmando que a lei pode ser desrespeitada. Todas as declarações do candidato que li na imprensa eram claras no sentido de que Lula acha que é preciso discutir a lei que o impede de usar o carro de som dos metalúrgicos na campanha (ainda que tenha sido aprovada com a participação de seu partido, o PT), porque não a considera justa. Lula não disse, em nenhum momento, que pretende continuar desrespeitando a lei. Mas os jornais disseram que ele disse -e agora é difícil convencer o leitor do contrário.

Ao longo da semana, a ombudsman recebeu 32 protestos contra a reportagem de capa da Revista da Folha do último domingo, intitulada "A Perua de Deus". A reportagem traçava um perfil irônico e preconceituoso de Sonia Hernandes, a pastora de uma igreja evangélica chamada Renascer que faz pregações numa linguagem muito particular -ela diz, por exemplo, que "Deus é uma coisa quentinha". A Renascer, segundo a Revista da Folha, faz sucesso entre os jovens e se transformou num negócio "milionário" (não há dados na reportagem que sustentem firmemente essa afirmação). A redação da Revista da Folha recebeu mais 117 protestos contra a reportagem, além de três abaixo-assinados somando 629 assinaturas. Houve seis cartas de apoio à reportagem.

A reação dos leitores, no entanto, não foi totalmente espontânea: a pastora conclamou seus seguidores, num programa de rádio que mantém na rádio Imprensa Gospel FM (um de seus negócios "milionários") a escrever para a Folha. Por essa razão, é quase impossível separar os leitores realmente incomodados com a reportagem daqueles que apenas seguiam as ordens de Sonia Hernandes. Conversei com alguns deles por telefone e pude perceber que sua argumentação era frágil. Pelo menos dois disseram (acredite, leitor) que não haviam lido a reportagem antes de protestar.

De qualquer maneira, escrevi na crítica interna que reportagens como "A Perua de Deus" pouco acrescentam aos leitores da Folha, exatamente pelo tom debochado com que são recheadas. A Revista da Folha alterna esse tipo de reportagem de capa com outros mais informativos, mas também descamba para o deslumbramento às vezes e está longe ainda de ser indispensável como leitura -mesmo aos domingos. Falta personalidade a ela. E não é uma reportagem como "A Perua de Deus" que vai dar à Revista da Folha sua personalidade. Mesmo porque sua concorrente mais direta, a "Vejinha", havia feito a mesma reportagem, muito mais equilibrada e informativa, um mês antes.

A Folha deu uma lição de transparência e profissionalismo na semana passada, num episódio que começou mal e terminou como exemplo. No sábado, 21 de maio, o jornal publicou reportagem na Primeira Página a respeito de uma entrevista de Lula à rádio Atual em que o candidato teria dito que achava necessário saber inglês para governar o Brasil. No domingo, 22 de maio, um "Erramos" na pág. 1-3 explicou aos leitores que a informação estava errada: Lula disse, na verdade, que faria um curso de inglês se achasse que isso seria necessário para governar o Brasil.

Na terça-feira, o jornal voltou ao assunto -e, dessa vez, como se deve. Colocou nota na Primeira Página esclarecendo ao leitor, com todas as letras, que "a Folha errou ao transcrever a reportagem". Na página 1-6, o jornal deu a íntegra da entrevista de Lula à rádio Atual e esclareceu que a reportagem do sábado foi produzida não a partir dela, mas de um trecho dela anotado numa sinopse da Agência Folha. Na crítica interna daquele dia, fiz uma sugestão ao jornal: de que esse procedimento se transforme em padrão daqui em diante quando os erros a serem retificados sejam desse quilate. Porque é o tipo do procedimento que demonstra respeito pelo leitor.

Na coluna de domingo passado, cometi uma imprecisão: o jornal "O Estado de S.Paulo" publicou Nota de Redação retificando uma manchete sobre o envolvimento de Quércia na CPI da Previdência na sua primeira página de quinta-feira. Escrevi que a Nota de Redação saiu "dentro da edição".

Na sexta-feira, participei de um seminário promovido pelo jornal "Hoy" em Assunción, no Paraguai, com a presença também de jornalistas do Chile e da Argentina. A discussão central foi sobre a necessidade que a imprensa paraguaia sente, hoje, de um código de ética para regulamentar sua atuação num mercado concorrido e dominado por um fenômeno que nós, brasileiros, conhecemos bem, o "denuncismo". O Paraguai não tem leis que regulamentem sua imprensa, e os jornalistas acreditam que o código seria melhor se produzido fora da esfera do poder público. "Temos condição de fazer uma boa autoregulamentação", diz José Luís Simón, ombudsman do "Hoy" há sete meses, o primeiro da imprensa paraguaia. "Nas democracias ainda não consolidadas como a nossa, a imprensa se veste de um poder absoluto. Ela dá e ela tira todas as honras e glórias, no momento em que bem entende, sem que o leitor possa reclamar. É preciso acabar com isso".

As discussões vão prosseguir, e o diário "Hoy" já planeja a segunda edição do seminário para breve.


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