Folha de S. Paulo


De olho nos títulos

Um leitor de São Paulo telefonou na terça-feira e me pediu que desse uma olhada na Folha e em "O Estado de S.Paulo". Os dois jornais tinham notícia completamente diferente sobre a mesma pessoa, a respeito da mesma situação. Na Folha, o senador Mário Covas (PSDB- SP) surgia numa pequena reportagem da página 1-7 dizendo que uma aliança entre seu partido e o PFL seria "extremamente adversa", e desagradaria eleitores dos dois lados. O título da reportagem: "Covas é contra aliança com PFL".

No "Estado", chamada na capa do jornal informava: "Covas diz aceitar aliança com PFL". Na página A8, uma entrevista do senador trazia frases inequívocas, como "não vou me opor se o partido decidir pela aliança". O leitor suspirou desanimado do outro lado da linha. "Em quem eu devo acreditar?"

Leio de quatro a seis jornais por dia (o chamado dever do ofício), mas na maior parte das páginas faço o que todo leitor faz, dou uma passada de olhos nos títulos e sigo em frente. Por isso, muitas vezes fico com a mesma dúvida desse leitor -quando não me sobram dúvidas piores ainda. No caso específico das declarações de Covas, foi possível ver que a Folha tirou conclusões precipitadas, porque uma releitura da reportagem deixa ver que o senador não disse ser "contra" a aliança. O "contra" foi parar no título por obra do jornal. Nada do que vinha abaixo desse título, aliás, o sustentava. Foi descuido, o chamado "erro de acabamento" que compromete a credibilidade de um jornal e abusa da paciência do leitor. Teoricamente, um título deveria resumir o aspecto mais importante ou interessante da reportagem que introduz. Na prática, vale o chavão: a teoria tem sido bem outra.

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O exemplo levantado pelo leitor de São Paulo expõe a fragilidade de uma imprensa onde frequentemente títulos de reportagens e reportagens propriamente ditas não se entendem. Na semana passada, a Folha chegou a escrever numa manchete (na quinta- feira): "FMI dá apoio a Fernando Henrique". Nada na boa cobertura feita pelo correspondente do jornal em Washington deixava ver que o fundo tivesse dado qualquer tipo de respaldo a Fernando Henrique-ele-próprio, seja como ministro ou candidato ao Planalto. O correspondente não escreveu isso na Folha -e se enviou essa informação em seu despacho, ela não esteve nas páginas do jornal.

A reportagem revelava que havia, sim, uma nota de apoio ao plano econômico do governo. Mas depois de anos de negociações entre o Brasil e o FMI qualquer jornalista sabe que as atitudes políticas (às vezes, só polidas) de seus dirigentes não implicam realizações práticas. A reportagem revelava também que, apesar da nota, não há acordo à vista. Há promessa de acordo, se a promessa de plano de estabilização caminhar. De onde, então, a Folha tirou sua manchete? Onde foi que ela viu o apoio a Fernando Henrique que trombeteou? Não tive o que responder a um outro leitor que me perguntou.

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Boa parte dos leitores lêem apenas títulos nos jornais, e mergulham nas reportagens apenas quando elas lhe interessam. Por essa razão, conhecida e reconhecida em qualquer redação do planeta, a imprensa deveria ter mais cuidado com o que escolhe para colocar naquela linhazinha gritantemente solitária. Se um jornal como a Folha escreve, despreocupadamente, que o "PT não tem favoritos à eleição em 11 Estados", milhares de leitores podem achar que, nos outros, o partido de Lula está arrebentando nas pesquisas. Não está. Ou, se está, a pesquisa que gerou a manchete de domingo passado não revela. E acaba desinformando o leitor.

Que dizer, então, dos títulos que induzem o leitor a achar isto ou aquilo sobre determinados assuntos? Na edição de terça-feira, a Folha publicou pesquisa sobre a avaliação dos governos estaduais. Escreveu que "Rejeição a Brizola já alcança 52% no Rio" e "Governo de Fleury é apenas regular". Tivesse seguido as próprias regras de seu Manual dispensando o "já" de Brizola e o "apenas" de Fleury, seus títulos poderiam sair em qualquer bom jornal do mundo. Mas ao "enfeitar" esses títulos, acrescentou a eles uma indesejável dose de opinionismo que só cabe em panfletos, nunca em jornais. Por causa de duas palavrinhas, o jornal deu a seu leitor o direito de desconfiar da isenção da Folha diante de Brizola e Fleury.

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Já escrevi aqui, antes, que os títulos da Folha são um ponto fraco -fraquíssimo- do jornal, e sua Redação precisa enfrentar esse problema se quiser fazer um bom produto. Se quiser fazer um jornal que poupe seu leitor de absurdos, obviedades e enunciados de dupla leitura, ou desinformativos, ou enganosos, ou falsos mesmo.

Se o leitor em casa quiser conferir o tamanho do problema, anote numa única edição todos os títulos que considerar ruins. O critério é simples: ruim é o título que não informa direito, ou não informa nada, ou ainda desdiz a reportagem que supostamente deveria apresentar. Faça um traço vermelho em volta dele e envie para a ombudsman. Semana que vem, volto ao assunto -se não ficar soterrada debaixo da montanha de páginas da Folha que os leitores certamente vão me enviar.

A Folha tem sido o jornal mais discreto no caso do aumento auto-concedido pelos deputados federais na sessão (com quórum) de quarta-feira. Enquanto outros jornais elevaram a notícia às suas manchetes da quinta (caso dos cariocas "O Globo" e "Jornal do Brasil", além do "Estado"), a Folha ficou com uma chamada abaixo da dobra na Primeira Página e uma cobertura tímida até ontem. O jornal parece relutar em dizer a seu leitor que o aumento, não bastasse ser auto-concedido e incoerente com os salários convertidos em URV pela média na iniciativa privada, bate de frente com o plano de estabilização do ministro FHC (coisa que é destaque nos concorrentes). Das duas, uma: ou falta sensibilidade à Folha, ou o jornal tem informações diferentes das do restante da imprensa -mas não está conseguindo se explicar sobre suas razões para, como se diz, "baixar a bola" do caso.

Mais: ninguém conseguiu, até agora, apresentar um cálculo de quanto o aumento (que inclui, além do Legislativo, o Judiciário) representa para os cofres públicos. Há "chutes", mas nenhum dado conclusivo. Os jornais ficam na reprodução de declarações oficiais, mas não mostram qualquer espírito crítico diante de autoridades que protestam contra o aumento sem saber quanto é que ele vai custar. Não manifestam qualquer espírito crítico diante de autoridades que revelam, com isso, que a administração pública brasileira é uma bagunça só.

De modo geral, a imprensa se preocupa pouco com esses dados que envolvem o bolso do contribuinte. Há, sim, uma questão de ordem moral na votação de quarta-feira, bem destacada em editoriais na imprensa. Mas há outra de ordem prática: quanto custa o aumento para o leitor-cidadão que paga impostos? É possível que ele seja derrubado pelo Senado sem que ninguém saiba quanto é que morderia do dinheiro público.

Na terça e quarta-feiras, manifestantes depredaram ônibus em São Paulo protestando contra a retenção de clandestinos pela Prefeitura, que alega irregularidades nos carros para tirá-los das ruas. Na madrugada de quinta, favelados fecharam uma avenida na zona Sul da cidade em protesto contra dois atropelamentos e criaram um caos que durou boa parte do dia, no trânsito e na vida da região. Na noite da quarta, o filho sequestrado do deputado federal Fábio Raunheitti escapou do cativeiro e conseguiu voltar para casa antes do pagamento do resgate de US$ 2 milhões.

A Folha registrou os três assuntos em pequenas notas sem destaque. Deve achar que são parte de um cenário de violência urbana que não toca o leitor. Mais insensibilidade do jornal.

A revista "Istoé" da semana passada afirma, numa reportagem sobre o caso Hebe Camargo, que a apresentadora e Dercy Gonçalves "no auge de uma conversa televisiva sobre a CPI do Orçamento, chegaram à conclusão de que o melhor para o País (sic) seria fechar o Congresso". A frase está na abertura de uma reportagem na página 33.

Ocorre que, na conversa com Dercy, transcrita em vários jornais desde a semana anterior, Hebe jamais pediu o fechamento do Congresso. Ela chamou deputados de "vagabundos", Dercy soltou alguns palavrões mas não se falou em descer as portas do Congresso. Bastava ter consultado jornais ou pedido cópia da fita do programa ao SBT, e a revista teria se livrado do vexame de inventar uma história -pior, de passar recibo para uma história que, não se sabe como, nasceu dentro do próprio Congresso. Esse jornalismo de ouvir-o-galo-cantar-sem-saber-onde dá nisso.


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