Folha de S. Paulo


A realidade por trás dos números

Na segunda coluna que escrevi como ombudsman da Folha (no domingo, 3 de outubro), critiquei duramente o jornal por não estar fazendo jornalismo com os números da violência urbana. Dias antes, "O Globo" e "Jornal do Brasil" haviam publicado um balanço dos homicídios ocorridos em São Paulo no fim-de-semana anterior, destacando a notícia em suas primeiras páginas. Na Folha, depois que protestei numa crítica interna, o tal balanço surgiu numa reportagem acanhada, com um graduado delegado de polícia contestando os números oficiais e insinuando que eles poderiam ter sido superestimados pela imprensa do Rio.

O caso era mesmo grave: não bastasse os jornais cariocas terem publicado totais diferentes para o mesmo balanço, a Folha ainda achou uma autoridade que os desautorizou. O título que dei àquela coluna -"Quando a violência não é um show"- resumia minha opinião. A imprensa consegue cobrir a violência das grandes cidades quando ela pede para entrar no jornal, através de histórias tão espetaculares quanto sangrentas. Caso contrário, limita-se a reproduzir dados burocráticos obtidos em gabinetes e não raciocina sobre eles. Mesmo que cada jornal, cada TV, cada revista, cada rádio tenha um número diferente, e ele seja alto, ainda assim a imprensa parece não se incomodar. Não percebe como e quanto esse assunto, essa violência surda e cotidiana, interessa ao leitor.

Na semana passada, a Folha resgatou essa dívida com seus leitores e deu uma das melhores mostras de bom jornalismo feitas recentemente. Durante 10 dias, três repórteres do caderno Cotidiano visitaram delegacias de polícia e divisões do Instituto Médico Legal em São Paulo, somando os homicídios registrados em cada uma. Fizeram exatamente o que a ombudsman cobrava do jornal: foram conferir, caso a caso, como se morre e se mata num fim-de-semana paulistano. No final, juntaram suas anotações e descobriram uma bomba: a polícia manipula dados da violência urbana em São Paulo.

Os repórteres da Folha mergulharam nos boletins de ocorrência e conseguiram comprovar que os 29 homicídios divulgados pela polícia paulista como sendo dados definitivos do primeiro fim-de-semana de dezembro foram, na verdade, 59. Com isso, a média diária de mortes violentas na capital, que a polícia insistia estar estacionada em 6,6, saltou para 19,6. Não há como desconfiar destes novos números. Eles foram pacientemente garimpados em documentos oficiais da própria polícia por três repórteres experientes, que sabiam o que procuravam: os números verdadeiros. São, eles sim, definitivos.

É claro que a notícia foi parar na primeira página (na edição de terça-feira) e provocou um terremoto no governo estadual. O secretário da Segurança Pública ainda tentou mostrar onde nasceu a falha de comunicação entre as delegacias e a Coordenadoria de Análise de Planejamento, o órgão de sua pasta encarregado das estatísticas da violência paulista. Não convenceu. Na quarta e quinta-feira, ele apareceu no jornal afirmando que iria tornar obrigatória a comunicação de todos os homicídios a seu gabinete, de forma a ter os números reais dos casos. Explicou-se, mas não ergueu palavra contra a reportagem da Folha.

O que o jornal fez merece elogios mas, no fundo, não passa de obrigação -bem cumprida, mas ainda uma obrigação. Ao fazer jornalismo sobre os papéis oficiais, a Folha conseguiu dar início a uma "operação desmanche" dos números da violência urbana que deve agora continuar. Se a polícia está sonegando informações sobre homicídios, o mais grave dos crimes contra a pessoa humana, o que se pode esperar dos números sobre assaltos? Ou sobre roubos de carros? Ou ainda sobre os casos de irregularidades que envolvem os próprios policiais?

A Folha fez, com os números dos homicídios, o que o leitor espera dela e paga a ela para que faça. Ao comprar seu exemplar na banca ou fazer uma assinatura, o leitor elege um determinado jornal para investigar, escarafunchar, levantar histórias e estar onde ele, leitor, não pode estar. Ao conferir uma espécie de mandato ao jornal, o leitor espera ser recompensado com informações verdadeiras, confiáveis e incontestáveis -seja a cotação do dólar ou o número de homicídios que acontecem em São Paulo num fim-de-semana.

Já que, mostram a experiência e esta reportagem da Folha, os dados oficiais mentem, a imprensa tem mesmo que deixar de lado os press-releases dos gabinetes e arregaçar as mangas. Há uma realidade por trás dos números que precisa vir à luz, e cabe à imprensa boa parte da tarefa de revelá-los. Mesmo porque, quaisquer que sejam as providências, elas só poderão ser avaliadas se a situação real for conhecida. A Folha deu um primeiro passo no caso dos homicídios em São Paulo. Que tal, agora, traçar um perfil completo e exato da violência em todo o país?


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