Folha de S. Paulo


O antiefeito do efeito Madonna

Confesso que, no início, não entendi nada: os leitores da Folha não se incomodaram com os palavrões ditos por Madonna e transcritos na edição de quinta-feira. Quando li o jornal pela manhã, preparei meu espírito para uma longa tarde de telefone, recolhendo protestos enfurecidos. Apenas dois leitores ligaram e um escreveu - este, para informar que a palavrada grafada com "u" pelo jornal consta no dicionário com "o ". Outro leitor foi bastante claro ao dizer que preferia ver o palavrão no jornal a ter que perguntar para os filhos que foram ao show qual teria sido. Mas, disse ele, uma vez só bastaria. O jornal reproduziu o palavrão oito vezes em duas páginas.
A mesma surpresa tive na segunda-feira, quando o jornal avançou na megacobertura que já vinha fazendo e estampou em sua área mais nobre, a caixa no alto da Primeira Página, que encontrara um vibrador na cama preparada para a cantora nos bastidores do estádio do Morumbi, onde ela se apresentou na quarta. O parelho estaria entre os travesseiros, a pedido da própria Madonna.
Tanto na chamada na Primeira Página quanto a reportagem interna eram inconsistentes: não descreviam como o vibrador foi encontrado nem que aparência tinha. Mas ganharam o destaque reservado às grandes notícias, aquelas que são importantíssimas para o leitor. A impressão que tive foi de que o jornal caíra numa espécie de conto-do-vigário armado pela produção do show, a quem interessava divulgar a imagem de furacão sexual de Madonna.
O raciocínio´é simples: só a Folha teria coragem de publicar com destaque a notícia de que havia um vibrador na cama de Madonna. Por esse motivo imaginei que o jornal pudesse ter sido vítima de sua própria ousadia editorial e os leitores iriam reclamar. Nenhum levantou o caso com a ombudsman, e a produção do show usou um espaço no Painel do Leitor para contestar que houvesse um vibrador nos camarins da cantora. O jornal sustentou a informação, d enovo sem dar detalhes de como e quando ele foi encontrado.
No papel de defensora dos leitores, abordei ambos os assuntos na crítica interna. No caso do vibrador, o cometário da ombudsman se prendeu ao aspecto da instrumentalização. O jornal teria servido aos interesses de Madonna, e não de seu leitor. No dos palavrões, escrevi que se o jornal tivesse se limitado a registrar o que Madonna disse, e quantas vezes disse, teria feito jornalismo. Ao reproduzir oito vezes uma das palavras mais vulgares da língua falada no Brasil - sim, porque nos países que falam português de Portugal, a conotação é outra-, a Folha exagerou. Deixou de fazer reportagem para fazer sensacionalismo e ofereceu-se como alvo dos que afirmam que ela faz um jornalismo irresponsável. Afrontou o leitor.
Outros jornais rechearam de hipocrisia o registro dos palavrões ditos pela cantora. "O Estado de S.Paulo" escreveu que Madonna disse "bunda e outro b que fica abaixo do umbigo" durante ensaio do show. O "Jornal do Brasil" noticiou que ela disse palavrões, genericamente, e "O Globo" criou uma expressão hiperbólica ao escrever que Madonna disse "palavrões de baixíssimo calão" no palco. Para desinformar o leitor dessa maneira, melhor seria nem tocar no assunto.
A Folha agiu correta e incorretamente ao mesmo tempo: o repórter que assistiu o ensaio de Madonna descreveu em seu texto como foi que ela perguntou à platéia os nomes dos órgãos genitais masculino e feminino, e contou a repetição deste último 31 vezes depois que a cantora aprendeu a lição. Até aí, o jornal fez jornalismo. Depois, tornou-se presa de sua irreverência e um arremedo do que viu no palco do Morumbi: repetiu a palavra gratuitamente.
Se os palavrões ou o destaque dado ao vibrador não motivaram protestos dos leitores, a ombudsman não deveria se preocupar com o assunto em sua coluna de domingo, devem estar pensando alguns. Afinal, há uma CPI do Orçamento em Brasília, uma imprensa coalhada de denúncias mal sustentadas por suas próprias investigações, um presidente em estado depressivo, um país à deriva. Mas continuo intrigada com o que aconteceu, e imagino ter encontrado a resposta: o leitor não se incomodou com o vibrador e os palavrões porque se acostumou a um país onde deputados ganham mais de 200 vezes na loteria, meninos são mortos na rua e casais fazem sexo na TV em plena sessão da tarde. ou seja, o leitor tem mais com o que se preocupar, e não ligou a mínima para as peripécias de Madonna. No fundo, o leitor não se incomodou foi com Madonna.
Deve ser. Porque só isso explicaria que tão poucos leitores tenham reclamado da cobertura "overdosada" da imprensa em geral, e da Folha em particular, para a turnê de Michael Jackson e, depois, de Madonna ao Brasil. Só isso explicaria que a ombudsman não tenha recebido reclamações quando o jornal chegou ao absurdo de publicar foto do avião de carga com equipamentos de Michael jackson estacionado no aeroporto do Recife, em escala técnica para Buenos Aires. O cantor ainda demoraria uma semana para chegar ao Brasil. Ou as muitas fotos das suítes que Madonna ocupou em São Paulo e no Rio, com requintes de detalhes como a cama onde a cantora se deitaria ou a vista que teria da janela. Isso tudo num jornal que economiza espaço em seu caderno de Esporte, para ficar num único exemplo.
Muito mais do que o público, a imprensa ficou deslumbrada com os dois megastars e cumpriu direitinho o papel de menino de recado de ambos. A lista de exigências dos artistas foi esmiuçada, soube-se até que sabonete um e outro usariam no banho, que refrigerante beberiam no almoço, o que pediriam no café da manhã, o que usariam durante o ensaio e por ai vai. Há muito não se via tamanha histeria na imprensa; desde a viagem de João Paulo 2° ao Brasil em 1980, talvez. O que se gastou de papel, tinta, fita de vídeo e dinheiro nessa cobertura não está escrito em lugar nenhum. E para quê?
Para satisfazer um leitor que, a julgar pelos assuntos abordados em cartas e telefonemas à ombudsman nas últimas semanas, está mais preocupado com a correção das informações publicadas no caderno Dinheiro, com a angulação justa do noticiário da CPI do Orçamento, com a greve dos professores estaduais em São Paulo (já encerrada), com o plano econômico que a imprensa anunciou mas não existe.
Os jornais, revistas e televisões cansaram seu fôlego para cobrir Madonna e Michael Jackson de atenção enquanto, para o público, os requebros pretensamente sensuais de ambos seriam apenas mais um espetáculo neste país de escândalos. Não houve um só leitor que ligasse para elogiar a megacobertura, apoiar sua extensão, comentar sua abrangência. O efeito Madonna passou em branco.
Tivesse canalizado esforços para assuntos mais importantes - e aqui não conta nenhum juízo de valor, mas a opinião que os leitores expressaram e deixaram de expressar nos últimos dias à ombudsman-, e a imprensa teria ganho pontos em credibilidade e eficiência aos olhos de seu público. É essa lição que sobra de duas megacoberturas onde nem mesmo a repetição exagerada de um palavrão por um mesmo jornal, num mesmo dia, conseguiu sensibilizar o leitor a se manifestar.

Notas
Para que o leitor compare e julgue por si mesmo, transcrevo a seguir os lides das reportagens publicadas pelo jornal "O Globo" e pela Folha depois do depoimento do deputado Ricardo Fiuza à CPI do Orçamento, na última quinta-feira:
"O Globo" - "Firme e sempre na ofensiva, o deputado Ricardo Fiuza rebateu a maioria das acusações de manipulação de verbas públicas e de participação em um esquema de corrupção, durante seu depoimento ontem. (...) Ele admitiu, contudo, ter incluído muitas emendas a pedido de parlamentares, mas todas legais. (...) Os poucos tropeços de Fiuza aconteceram quando foi acusado de ter adulterado o Orçamento de 1992 após sua aprovação no Congresso."
Folha - " O deputado Ricardo Fiuza depôs ontem durante 12 horas à CPI do Orçamento e deixou três questões sem um esclarecimento definitivo: 1) o aumento de seu patrimônio; 2) as alterações ao Orçamento; 3) os critérios para liberar o dinheiro das emendas das subvenções sociais. O deputado reconheceu que a estrutura da Comissão do Orçamento é caldo de cultura para a corrupção."
Alguém desinformou seu leitor.

Também para que o leitor julgue por si mesmo, transcrevo trecho de reportagens publicadas por "O Estado de S.Paulo" e Folha sobre a empregada Noelma Neves, cujos cheques pagariam as apostas milionárias na loteria do deputado João Alves:
"Estado"- "Noelma despertava curiosidade entre os funcionários do banco. Raras vezes comparecia à agência. Mulata e gorda, na descrição dos que a conheceram, não deixava transparecer a condição de titular da mais importante conta da agência" (na quarta-feira, 3 de novembro, pág. A8). Folha - "A casa onde mora a empregada do deputado tem dois pavimentos e está inacabada. (...) Na parte de cima do sobrado estão pendurados um chifre de boi, sacos de alho e dois litros de bebida - produtos ligados a rituais de candomblé" (na quinta-feira, 4 de novembro, pág. 1-11).
Há gente na imprensa que ainda acha que mulatas gordas não podem ter dinheiro e, necessariamente, fazem macumba contra seus desafetos. Isso tem nome: é preconceito.

Um conselho ao leitor nestes tempos de CPI do Orçamento: desconfie de tudo. A imprensa está juntando no mesmo saco suspeitas , indícios e denúncias, transformando tudo em acusações irrefutáveis. Ao ler uma notícia nos jornais ou vê-la na televisão, sugiro ao leitor que se pergunte: fui convencido pelas provas que a imprensa mostrou?
Há crimes que a imprensa ajuda a revelar, mas há também procedimentos legais até prova em contrário que ela transforma em criminosos. Por exemplo: pedir subvenções para uma determinada entidade não é crime, mas uma prática correta dos políticos em geral. Se a entidade que recebe usa devidamente o dinheiro, e presta conta - e se não paga propina ao deputado pela liberação da verba-, não há irregularidade. A imprensa ainda não percebeu isso.

A falta do caderno Tudo nos exemplares que circulam no interior e fora do Estado de São Paulo (exceção feita ao Rio de Janeiro, que está recebendo o caderno), continua sendo alvo de reclamações dos leitores. No noite de sexta-feira, a secretária de Redação Eleonora de Lucena reafirmou que o caderno deve voltar a ter circulação nacional em 26 de dezembro e informou que a empresa "estuda alternativas para suprir a deficiência até lá.
Na semana passada, a ombudsman propôs que a Folha encontre uma forma de compensar a falta do caderno a seus leitores. A sugestão é encartá-la num outro dia da semana (na segunda-feira, por exemplo). Os leitores que procuraram a ombudsman não pensam em qualquer compensação que não envolva o recebimento do caderno. "Eu só comprava o jornal aos domingos por causa dele", disse um pequeno empresário de Curitiba. "Sem o Tudo eu e minha mulher nos sentimos meio órfãos para dirigir nosso negócio."
Tomara que até a semana que vem a ombudsman tenha uma boa notícia para dar aos leitores do Tudo.


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