Folha de S. Paulo


Quando a violência não é um show

-O leitor da grande imprensa em São Paulo não sabe que a cidade pode ter vivido seus três dias mais violentos na semana passada. Entre as 8h da manhã de sexta-feira e 8h da manhã da segunda, 31 assassinatos aconteceram na região metropolitana, a maior parte deles na periferia pobre da capital. Em 36 horas, a cidade assistiu a uma chacina surda, igual a de uma Vigário Geral e meia. A imprensa paulista não notou. Não deu ao assunto o mesmo alarde com que cobriu a invasão da favela carioca por policiais, há um mês, quando 21 pessoas foram mortas.

Em São Paulo, apenas o "Diário Popular" publicou a notícia. Foi esse jornal, aliás, quem levantou o caso, ao noticiar na terça-feira que a polícia registrara 47 assassinatos numa só madrugada na Grande São Paulo. O jornal, um fenômeno de venda em bancas com mais de 100 mil exemplares diários e cobertura extensiva de casos de polícia, errou nas contas. Mas colocou o assunto em pé.

Os jornais do Rio correram atrás do caso, pautaram suas sucursais em São Paulo e, na quarta-feira, tinham o assunto em suas primeiras páginas. "Jornal do Brasil" e "O Globo" publicaram números diferentes (no "JB", os assassinatos também eram 47; o erro estava em somar atropelamentos e afogamentos registrados no Instituto Médico Legal como "mortes violentas" aos 31 assassinatos ocorridos). Os jornais entrevistaram autoridades diferentes que falaram em providências diferentes para coibir a violência em São Paulo. Só uma coisa era igual: a importância dada à notícia.

Na mesma quarta-feira, jornais de todo o país estavam destacando o tiroteio ocorrido na véspera entre traficantes e policiais na favela de Acari. A Polícia Federal ameaçava chamar o Exército para desarmar as favelas cariocas e o governador Leonel Brizola respondia dizendo que em São Paulo "se rouba mais, assalta e mata mais do que no Rio", e ninguém parece notar.

Nem a frase do governador serviu para acordar as redações da Folha e de "O Estado de S.Paulo". A reação foi a de sempre, burocrática. Nenhum dos dois jornais se mobilizou para remexer os números da polícia e conferir se o governador fluminense tem ou não razão no que diz. Brizola apoiava suas palavras também nos dados daquele fim-de-semana violento, mas os jornais paulistas continuavam míopes para o caso.

Quando a Folha reagiu, na quinta-feira, ainda deu mais uma lição de anti-jornalismo. Naquele dia, o jornal publicou uma entrevista com o delegado Nelson Silveira Guimarães, diretor da Divisão de Homicídios do Deic, em que ele "desmentia" os números do fim-de-semana. Para o jornal, que continuava utilizando o balanço errado, as 47 "mortes violentas", o delegado refez as contas e mostrou que os assassinatos haviam sido 31 contra 16 no fim-de-semana anterior. Ou apenas 31, como publicou o jornal.

"Foi uma colocação infeliz", diz a secretária de Redação da Folha, Eleonora de Lucena. "De fato essa cobertura teve falhas, mas em nenhum momento houve a intenção de diminuir o impacto da notícia apenas porque ela era uma notícia sobre São Paulo."

O que diz Eleonora de Lucena faz sentido. Tradicionalmente, a imprensa feita no Rio tem sido mais bairrista e os jornais cariocas não perdem a menor oportunidade de levar às suas manchetes o noticiário depreciativo sobre São Paulo. Como não perderam. Neste caso, porém, o que eles fizeram foi mostrar, mais do que bairrismo, agilidade. Apanharam uma boa pauta num canto de página do "Diário Popular" e foram atrás do caso. Pesquisas têm revelado que a violência urbana é o assunto que mais preocupa o brasileiro hoje. Os números da polícia, registros documentados, revelam que o fim-de-semana foi excepcionalmente mais violento. Provavelmente o mais violento que a cidade já viveu. Foi incompetência da Folha e do "Estado" não abordar o assunto, mesmo que já estivesse em outros jornais.

É muito mais fácil cobrir um caso sensacional como o tiroteio entre polícia e traficantes na favela de Acari, no Rio, do que debruçar sobre boletins de ocorrência da polícia para produzir uma reportagem. No primeiro caso, tudo ajuda. A notícia pede para entrar no jornal. No segundo, é preciso paciência, perspicácia e um razoável domínio de técnica jornalística -para não ser, por exemplo, enganado por falsas evidências como as que o delegado do Deic enfiou goela abaixo da Folha.

Muitos dos leitores paulistas vão ficar sabendo, por esta coluna, que a cidade pode ter vivido seu fim-de-semana mais sangrento. É uma pena. Folha e "Estado" perderam a oportunidade de fazer bom jornalismo ao deixar de investigar o que houve de especial naqueles três dias em que 31 pessoas foram assassinadas, a maior parte delas fora do circuito que conta na cidade -os bairros ricos onde tudo o que acontece é notície.

Talvez o governador Brizola tenha razão, e em São Paulo estejam acontecendo mais assassinatos e roubos que no Rio. Talvez a periferia da cidade seja mais violenta que as favelas cariocas. Mas como a polícia não dá show, não chama a Rede Globo para "estourar" quartéis-generais do crime nem traficantes promovem churrascos de confraternização com a presença de jornalistas, como em São Paulo a morte não vira espetáculo faz algum tempo, a imprensa se esquece de que a periferia existe. E trata 31 mortes como se elas não valessem nada.

NOTAS
-Uma das perguntas mais frequentes que tenho recebido nas duas últimas semanas diz respeito ao nome do cargo agora ocupado por uma mulher. Por que ombudsman e não "ombudswoman"? Só na última sexta-feira, contei oito cartas com a mesma dúvida.

A palavra ombudsman é de origem sueca e tem sido usada, em jornais e órgãos que adotaram esse profissional ao redor do mundo, sempre da mesma maneira. Caio Túlio Costa, primeiro ombudsman da Folha (1989-1991), conta que alguns jornais americanos onde o cargo foi momentaneamente ocupado por uma mulher optaram pela forma "ombudswoman", americanizada. A maioria desses jornais acabou abandonando a versão e voltou a adotar a forma original.

Quando aceitei o cargo, a questão foi discutida com a Direção de Redação. De comum acordo, ficamos com ombudsman. Para facilitar a vida do leitor. Espero que a explicação seja suficiente.
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Entre quinta e sexta-feira, 18 leitores procuraram a ombudsman da Folha para reclamar do anúncio perfumado que circulou na edição de 30 de setembro, uma homenagem da perfumaria O Boticário ao Dia da Secretária. Os mais furiosos eram os assinantes do jornal.

"Minha casa foi invadida por um perfume de que não gostei", argumentou Olga Aparecida do Nascimento, de Osasco. "Passei a espirrar e fiquei com dor de cabeça. Idem a minha secretária, justo no dia dela", reclamou Gilberto Galan, de São Paulo.

"O mercado considerou um sucesso", diz Antonio Carlos de Moura, diretor comercial da Empresa Folha da Manhã. Sobre repetir a experiência, porém, ele é cauteloso. "Tivemos telefonemas elogiando e outros reclamando do anúncio. Ainda estamos pesquisando junto aos leitores para saber como eles receberam a idéia."

Se algum leitor não se manifestou, ainda é tempo. Telefone para a ombudsman.

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Um dos melhores jornais feitos hoje fora do eixo Rio-São Paulo-Porto Alegre, "O Povo" acaba de nomear uma jornalista para ser sua ombudsman. Depois de Folha e "Folha da Tarde", é o terceiro jornal brasileiro a adotar a função.

"O Povo" é o segundo maior jornal em circulação no Ceará, com uma média diária de 30 mil exemplares. Tem 66 anos de idade e desde 1985 é presidido pelo empresário Demócrito Dummar, que o herdou da família. Foi dele a iniciativa de nomear a jornalista Adísia Sá, uma experiente profissional com 37 anos de carreira, para ser a ombudsman de "O Povo". "Acho que vai ser o momento mais agradável da minha vida de jornalista", diz ela. O anúncio oficial será feito em dois meses.

A nomeação de uma ombudsman vai dar mais argumentos aos que dizem que "O Povo" é apenas uma cópia da Folha. É inegável que o jornal cearense se inspira em algumas atitudes e iniciativas deste outro, mas em sua Redação ninguém esconde o fato. Por outro lado, é louvável sua postura de independência numa região do país onde a imprensa tem muito mais o que esconder do que o endereço de sua eventual fonte de inspiração.

Em nome de uma imprensa transparente e cada vez mais comprometida só com seus leitores, que a iniciativa de "O Povo" dê certo. Trata-se de um passo corajoso que muitos outros jornais do país, os da grande imprensa incluídos, ainda precisam dar.


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