Folha de S. Paulo


A conta que a imprensa não fez

No fim da tarde de quinta-feira, um leitor desesperado telefonou para o gabinete da ombudsman. Vou preservar seu nome. Ele contou uma história comum na classe média brasileira: trabalha o dia todo, ganha um salário até razoável mas já não conseguia manter o filho de dez anos numa escola particular. Matriculou o menino numa escola do Estado e pensou que, reforçando o ensino que ele receberia com alguma orientação extra, teria resolvido o problema.

Na quinta-feira, o menino continuava em casa por causa da greve dos professores nas escolas estaduais. Uma greve por melhores salários que completa hoje 61 dias, dois meses irremediavelmente jogados fora no calendário escolar e na vida de 6,5 milhões de crianças em todo o Estado.

O leitor que ligou foi só mais um entre dezenas que procuram o jornal implorando por uma solução para o impasse criado entre professores e o governo. Para esses leitores, alguns deles pais, outros professores, o jornal deveria tomar partido, interferir nas negociações, cobrar posições de quem quer que fosse. Fazer campanha, dar sua opinião, resolver o problema. Qualquer coisa -menos ficar indiferente do jeito que está.

Muitas vezes o leitor confunde o papel da imprensa, e em especial do jornal com o qual ele está habituado a contar todos os dias. Já tive de dizer em debates ou entrevistas, mais de uma vez, que a Folha não pode, ela própria, prender e manter na cadeia alguém como PC Farias ou obrigar supermercados a baixarem seus preços, como parte do leitorado gostaria. Não é sua atribuição, nem o jornal tem poderes para isso.

A confusão sobre o papel da imprensa é ainda mais generalizada depois do impeachment de Fernando Collor, quando jornais e revistas fizeram as denúncias e tomaram as rédeas das investigações que derrubaram um presidente. Mas no caso desta greve irracional, o leitor não confunde nada. Ele cobra da imprensa algo que não sabe exatamente o que é, mas tem certeza de que existe e já viu antes. Ele cobra a responsabilidade social que um jornal como a Folha tem.

O noticiário sobre a greve dos professores, a de mais longa duração no governo Fleury, está disputando páginas dos jornais com assuntos interessantes. É claro que a turnê de Michael Jackson ou as brigas de gangues em praias cariocas têm muito mais apelo como notícia do que uma greve que se arrasta por 61 dias sem perspectivas de terminar.

Mas o problema desta greve é que ela arrasta consigo 6,5 milhões de crianças que praticamente já perderam o ano na escola, mais pais, mães, professores e suas famílias. Quando estiver terminada, a greve ainda vai arrastar todos os outros cidadãos que pagam impostos e fazê-los honrar uma fatura cujo valor é impossível calcular. A imprensa não fez esta conta.

O que 6,5 milhões de crianças deixaram de aprender nos últimos dois meses não tem preço. Tem custo social. O atraso que isso representa para um país pobre como o Brasil, idem. Por mais que as tais aulas de reposição se estendam, muitas dessas crianças jamais vão recuperar o tempo perdido. Nenhum jornal diz isso.

Para a imprensa, a greve é notícia chata, dessas que só entram na pauta quando não há nada melhor. Ou quando professores e polícia trocam bordoadas em manifestações que param o trânsito da cidade -mas aí, a notícia é o congestionamento. Fora isso, a cobertura tem sido burocrática e se prende ao factual. Assembléias da categoria e mais nada.

Na última semana, por exemplo, os maiores jornais paulistas não deram qualquer destaque à greve. Nenhum editorial, nenhuma primeira página, nem mesmo no Dia do Professor. Já haviam esgotado também seu arsenal de histórias sobre a professora que ganha menos que uma empregada doméstica, a velha mestra do governador Fleury que apóia o movimento dos colegas ou a família que pensa em mandar os filhos de volta à escola privada economizando Deus sabe onde.

Sem criatividade para continuar no assunto nem agressividade para assumir sua responsabilidade social, a imprensa negligencia a cobertura da greve e a proeura de uma saída para ela. A mesma imprensa que sabe fazer pressão quando quer, que derrubou um presidente e fez confundir sua força na cabeça dos leitores. A mesma imprensa que sabe defender seus interesses e se mobiliza para isso. O pai do garoto de dez anos que ligou para a ombudsman, refazendo as contas até descobrir que não pode mesmo pagar uma escola particular, tem razão em seu desabafo. "Se fosse contra o IPMF, o jornal dava primeira página todos os dias."

A imprensa não tem que fazer campanha ou apoiar qualquer um dos lados, professores ou governo. Seria um desvio tão grande quanto achar que um jornal deve prender PC Farias ou derrotar a inflação. A melhor imprensa é aquela que consegue ser livre e manter distanciamento crtico dos assuntos que cobre. Mas distanciamento crítico é diferente de distancia apática.

A greve é uma queda-de-braço entre professores e governo. Não se discute a melhoria da qualidade do ensino, mas os salários aviltantes que o segundo paga aos primeiros. Não se discute um projeto para a educação, mas a reposição das perdas que a inflação impõe mensalmente aos trabalhadores. Nada disso foi parar nas páginas dos jornais. A Justiça se exime de mediar o embate, a imprensa vai ao show de Michael Jackson e 6,5 milhões de crianças ficam em casa. Sem problemas; semana que vem tem Madonna.

NOTAS
Seis leitores fizeram, por carta ou pelo telefone, a mesma pergunta esta semana. Se a Folha tivesse revisores, os erros do jornal acabariam? A resposta que a ombudsman deu a eles pareceu surpreender. Não, os erros continuariam existindo.

A Folha eliminou os revisores em 1984, no início da implantação do famoso Projeto Folha. A Redação foi informatizada e parte das vagas dos antigos revisores passou a ser ocupada por repórteres que escrevem reportagens em terminais de computador. O jornal começava a caminhar para um projeto de modernização que fez dele o maior e mais influente do país em menos de uma década.

Quase dez anos depois, é interessante ver que o leitor se lembra com saudades dos revisores e defende sua volta. Na verdade, o que o leitor quer é que os erros sumam do jornal. Ele se cansa de ler palavras como "excessão" e "assessórios", fica irritado ao ver vírgulas se intrometendo entre sujeitos e predicados, tem ataques de cólera (pelo telefone, a ombudsman presenciou dois até agora) quando o jornal assassina a própria língua.

Ao abrir mão dos revisores, a Folha tirou de seus jornalistas uma espécie de babá pronta a consertar traquinagens. Obrigou-os a serem responsáveis por tudo o que sai publicado no jornal em vez de transferir essa tarefa para tutores munidos de dicionários e gramáticas debaixo do braço. A idéia é simples: jornalistas precisam ter maioridade intelectual para exercer sua profissão. Se um repórter não checa a grafia de uma palavra que não conhece, como acreditar que ele checa as informações de suas fontes? Se ele comete erros de português, como não querer que ele cometa erros mais graves, de informação?

Ao eliminar os revisores, o jornal também acelerou seu processo de produção em benefício da temperatura das notícias que publica. É verdade que a Folha cercou-se de alguns cuidados: instituiu um controle diário de erros com a identificação de seus autores, que em situações limite podem ser punidos na avaliação mensal que editores fazem de sua equipe. O jornal ainda abriu a coluna "Erramos" numa página nobre, a 1-3, e frequentemente realiza seminários internos que incluem cursos de português.

Nada disso faz os erros desaparecerem; a tarefa é impossível. Ao leitor, entretanto, é dado o direito de protestar -e ser ouvido. Todas as queixas sobre acabamento no jornal são encaminhadas à Secretaria de Redação. Casos graves viram "Erramos". Reincidências podem acabar em demissão. Tudo em nome de um jornal melhor -sem revisores, mas mais quente e com menos erros.

O jornalista Marcos de Castro, 35 anos de profissão e 58 de idade, esclarece: a Rede Globo não tem ombudsman. A notícia circulou nos últimos dias, mas ele garante que sua função é diversa da dos ombudsmen de imprensa.

Castro foi contratado há três meses para assistir os telejornais e fazer um relatório crítico sobre a atuação dos repórteres. Como a da Folha, sua avaliação tem circulação restrita e caráter reservado. Ele se nega a dizer até quais as falhas mais comumente apontadas por ele entre os jornalistas da Rede Globo.

Ao contrário dos ombudsmen, entretanto, Castro não ouve nem encaminha opiniões e reclamações externas. Não representa o telespectador dentro da Rede Globo. "O ombudsman de imprensa é importante mas seu papel envolve uma conotação política que, na Globo, não cabe", diz ele. Em seu crachá, Marcos de Castro é identificado como editor sênior.

A Folha realiza, de terça a quinta-feira desta semana, o Fórum Folha de Jornalismo e Mídia em São Paulo. Em razão de estar envolvida na coordenação do evento, a ombudsman pede desculpas aos leitores mas terá de diminuir o ritmo de atendimentos nesses dias.

Ligacões telefônicas podem ser feitas, mas o leitor deixará seu recado numa secretária eletrônica e terá de aguardar um retorno na sexta-feira. Casos que necessitem resposta rápida devem ser enviados por fax ao número (011) 223.1644, com a anotação URGENTE feita de maneira visível. Na medida do possível, as cartas terão encaminhamento normal.


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