Folha de S. Paulo


O que Don Draper diz sobre o futuro da mídia

O episódio final de "Mad Men" se encerra com um momento prolongado de leveza e bem-estar, logo após a melancolia que marcou os episódios finais.

Em um momento de arte que imita a vida, um seriado de televisão sobre falsas narrativas e, em parte, sobre o poder cultural da própria televisão, chega ao fim justamente quando a própria televisão está desaparecendo. Netflix, Snapchat, Periscope, YouTube, Amazon, Hulu e agora a HBO –estes e outros que ainda vamos ver são os novos "canais".

Aqueles de nós que estamos do lado afortunado do abismo digital já não "assistimos à televisão" (exceto para ver esportes), mas folheamos telas múltiplas enquanto vemos "conteúdos" em streaming de vídeo. A genialidade de Don Draper consistia em vislumbrar o futuro, como deixou claro seu plácido sorriso final, mas em 1970 nem mesmo ele poderia ter previsto o fim da televisão.

Houve época em que enxergar o futuro era o domínio de acadêmicos pseudocientistas e cientistas reais. Mas o setor publicitário, que no passado usava grupos focais formados por poucas pessoas para produzir comerciais para mídia impressa, rádio e TV, hoje chama seus produtos de "conteúdo criativo" e utiliza algoritmos e análises patenteados para rastrear tendências e comportamentos globais, de modo a prever e moldar o futuro.

Esqueça o merchandising simplório –hoje as corporações globais financiam séries inteiras de TV para divulgar suas marcas e mensagens. A linha que separa verdades manufaturadas de verdades orgânicas nunca foi mais difusa.

Mas a genialidade do dom de Don Draper para "inventar verdades" para o marketing de massa de bens de consumo era derivada não da análise de conteúdos baseadas em conjuntos de dados produzidos por empresas, mas de sua própria intuição refinadíssima para a invenção de sua própria verdade.

Lembre-se da premissa do personagem de Draper, como ele nos lembrou esta semana: filho de mãe prostituta e pai alcoólatra, Dick Whitman matou seu oficial comandante e roubou sua identidade, escandalizou seu filho, infringiu seus votos matrimoniais e, depois de tudo isso, acabou sem nada.

Draper passou sua vida usando essas habilidades de malandro para inventar as bases emocionais do mercado de consumo de massas; você pode considerar que ele se iludiu a seu próprio respeito ou que ele teve o insight básico de que as pessoas têm o desejo e a capacidade de crescer e afastar-se de sua família e suas limitações social ou culturalmente determinadas.

Mas "Mad Men" não trata apenas da era paleolítica do marketing de massas. Trata também de como a história política e cultural molda nossa noção do que é possível. Um exemplo apenas: Don Draper pode ser o "muso" e anti-herói de Matthew Weiner, mas as mulheres da Sterling Cooper –Joan Harris, Peggy Olson– são os cérebros multitarefas (e também os corpos) do programa: elas moldam seus próprios futuros, superando tantas desvantagens.

A mensagem que fica de "Mad Men" é que o fato de ter feito as pazes interiores com sua própria grande mentira confere a Don a clareza para inventar o icônico comercial de 1971 da Coca-Cola. Weiner nos proporciona uma gargalhada precisamente ao sugerir que uma verdade arquitetada às vezes é tão boa quanto "a coisa real".


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