Folha de S. Paulo


O limite da Fifa

A Fifa investiga para deixar tudo como está.

Ir fundo sobre as escolhas da Rússia e do Qatar para receberem as próxima Copas do Mundo é como dar um tiro no pé, na cabeça, ou melhor, no cabeça.

Ao contratar o ex-procurador de Justiça do Ministério Público de Nova York, o americano Michael Garcia, para comandar a investigação, a Fifa só pode ter apostado que ele se deixaria seduzir pelas inúmeras tentações que emanam do luxuoso prédio da entidade, em Zurique.

Mas ao terminar um inquérito que lhe consumiu 18 meses de trabalho e redundou num relatório de 430 páginas, fruto da oitiva de 75 testemunhas de nove países, Garcia viu a Fifa resumir suas conclusões em apenas 42 folhas de papel.

Fosse resultado de extraordinário poder de síntese de um redator direto ao ponto e estaríamos todos aplaudindo. Qual o quê!

A redução para menos de 10% do texto de Garcia visou apontar práticas reprováveis, embora não ilegais, não criminosas, de maneira a deixar a Fifa confortável com suas escolhas e o dito pelo não dito.

Feita uma limpeza parcial no Comitê Executivo da Fifa, livre de figuras comprometedoras que renunciaram para não serem denunciados, como os brasileiros João Havelange e Ricardo Teixeira e o tobaguiano Jack Warner, ou o argentino Julio Grondona, que morreu, e, ainda, o banido catari Mohammed bin Hammam, Joseph Blatter imaginou que uma resposta ligeira ao mundo do futebol e, principalmente, aos incomodados patrocinadores da Fifa seria o suficiente.

Pois não foi.

Não foi porque Garcia não suportou ver a que reduziram seu esforço.

Incontinente, ele tratou de repudiar a simplificação e apelou para instância superior da própria Fifa.

Garcia concorda em não revelar os nomes de quem depôs no inquérito, mas classifica as conclusões que vieram a público como incompletas e erradas.
Sempre soou estranho que um investigador do porte de Garcia tenha aceito a incumbência, sendo a Fifa o que é.

Difícil imaginá-lo um ingênuo. Injusto supor que se considerasse acima do bem e do mal, com superpoderes.

Fato é que topou a empreitada e, tudo indica, não deixou muita margem para Blatter driblá-lo na hora do gol. Daí ter sido atropelado na grande área e estar sob o risco de levar um cartão vermelho se continuar a reclamar.

Ocorre que agora o procurador aposentado sabe muito, talvez só menos que Blatter, que justamente por saber demais não poderia mesmo deixar tudo em pratos limpos sem sair sujo da máquina de triturar louça.

O que leva à nova perplexidade: o que terá feito o cartola suíço a pensar que domesticaria Garcia?

A explicação está numa aposta no poder de sedução do futebol, o que mantém impunes, e até próximos de altas esferas governamentais, os cartolas brasileiros.

Resta torcer para que um dia isso acabe, e Garcia, que deve gostar mais de basquete, pode dar o primeiro passo.

Até a Estátua da Liberdade aplaudirá.


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