Folha de S. Paulo


O azul intenso da Patagônia e a consciência está na forma como vemos

O azul do lago Pehoe, no parque Torres de Paine, na Patagônia chilena, é quase de cegar de tão intenso e belo.

No Caribe –mas também em Paraty ou na Bahia a cor do mar pode ganhar encantadores contornos esverdeados ou azulados.

Lago Pehoe

Na Patagônia, a cor emerge não do mar, mas de tranquilos e gelados lagos de águas mansas. (Tranquilos? Depende do vento: às vezes é tão intenso que chega a formar pequenas, mas persistentes ondas nas margens, como no caso do lago Sarmiento, bem em frente ao lindo hotel Tierra Patagonia).

Lago Sarmiento

Na Argentina, a cor das águas dos lagos patagônicos pode ser igualmente surpreendente, como no Chile. Também podemos encontrar um azul intenso diante das geleiras, como vemos nas proximidades dos glaciares na região de El Calafate, como o glaciar Perito Moreno ou, não longe dali, no Upsala.

Sem geleiras patagônicas à vista, minha surpresa foi encontrar o mesmo azul de uma intensidade indecente num rio (e não num lago), em visita à Eslovênia. O rio So a, que serpenteia por terrenos acidentados (paraíso das competições de caiaque) e cujas corredeiras são desafiadas por enormes trutas subindo na contramão, é uma fenda lápis-lazúli rasgada num vale que se aprecia do alto das montanhas ao redor.

Mesmo após dias de muita chuva, o rio mantém sua altivez: não fica barrento, mas leitoso, com seu azul diluído e sempre insinuado.

No entanto, se tomarmos porções de água de cada um desses lugares –da geleira patagônica ao morno litoral brasileiro– teremos amostras de um líquido basicamente igual, mais ou menos translúcido, mas definitivamente incolor.

Os especialistas explicarão que a cor que enxergamos vem dos minerais (ou outros componentes) existentes no fundo das águas; é o reflexo da luz do céu sobre eles que determina as tonalidades que registramos em nossas retinas.

Assim, o azul que vemos não é a cor da água. Mas até onde isso importa? A cor está no nosso olhar, e é o que vemos, ou pensamos ver, que nos maravilha. Ou aterroriza, depende do que captamos.

A cor do dia, por exemplo, sempre me encanta –ou espanta, em seus extremos.

Em Moscou, tomar café da manhã tardio ainda no escuro ou ver-se em plena noite às cinco da tarde me deprime um pouco –o mesmo aconteceria se eu estivesse na mais familiar Paris.

Para tomar na mesma Paris um exemplo oposto, lembro vividamente do meu encantamento no meu primeiro verão na cidade, jantando à noite, mas numa alegre luz vespertina (o sol ainda presente enquanto pedíamos nossos pratos), no terraço do restaurante do parque Montsouris.

Nossos olhos vão tentando filtrar o melhor azul que podemos abstrair ao nosso redor. Aqui em Moscou, de onde cometo essas digressões, ouço de uma jovem russa que Stálin foi bacana, fez muito pelo "nosso progresso, pelo nosso país", embora –acrescenta ela como um detalhe menor– ele fosse uma pessoa cruel. Que detalhe, penso eu, na biografia de alguém que assassinou milhões de compatriotas, massacrou dezenas de conhecidos íntimos, trucidou os militantes socialistas e o próprio socialismo.

Aqui em Moscou meu olhar vai tentando separar, na paisagem, algumas belezas do passado das monstruosidades arquitetônicas do stalinismo. Vai tentando ver algum traço de mera ingenuidade na credulidade meio cega e aparentemente meio atávica das pessoas. Tenta ver graça nas centenas de bonequinhas matrioskas nas vitrines, filtrando o nojo de ver, na mesma prateleira, modernos souvenires como as canecas que perfilam, lado a lado, Trump e Putin, escórias do nosso tempo.

É bom que possamos, com nosso olhar, filtrar o belo azul nas coisas boas que nos encantam. Só é preciso cuidado para não cegar a visão das águas turvas que também existem e não deveríamos ignorar.


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