Folha de S. Paulo


Versão do céu

A HISTÓRIA é exatamente a que consta da sinopse. Jovem, filho no colo, abandonada pelo companheiro, entra em parafuso e toma terrível decisão, rifar o corpo por uma única noite para fazer dinheiro e se mandar de volta para o sul, o "lugar mais longe" que a rodoviária pode oferecer. Enfim, a miséria humana do Nordeste, do Brasil que ignoramos.

Só que o filme começa e a miséria não aparece -não aquela que sulistas associamos a qualquer coisa acima do norte de Minas. Não surgem os índices africanos do IBGE nem a mitologia simplista das novelas, onde o caricato e o racismo cordial camuflam o tratamento de castas. Sem coronéis, sem deputados e sem empregadas, o espectador é levado de ônibus ao Ceará, embalado por uma música que insiste em soar familiar. Não perca tempo, você certamente não conhece, mas já ouviu. É versão de música americana, motor de uma linda cena de amor, pura tragédia.

O sertão do Ceará de "O Céu de Suely", em cartaz nos cinemas, é real. Quente mas com água. Não tem carro mas tem moto. Não tem transporte público mas moto-táxi e estrada. E a estrada tem caminhão, um atrás do outro.

Tem cerveja, karaokê, motel com TV de controle remoto. Farmácia com modess, xampu e camisinha. Comida por quilo, guaraná, suco colorido, geladeira. Geladeiras! Novas, brancas, frost-free. Ocupam espaço importante no enredo, confortam, dão status e, em um momento crucial do filme, escancaram ao espectador e à personagem que a vida é dura quando é preciso escolher entre um futuro de todo incerto e a prestação do crediário.

Um futuro que a protagonista resolve trilhar sem poupança, bolsa-família ou família, cobrando de uma vez só todas as parcelas que homens consumidores se dispõem a pagar por uma noite com seu belo corpo. Homens, aliás, que não existem na família a que irá renunciar, como se o país vivesse um pós-guerra. País? Como a música, uma versão. Esta, porém, nua e crua.

Vivemos uma versão de nação. Copiamos e forçamos os versos para encaixá-los na melodia importada. Uma versão de país, farsa, desmontada a cada projeção do PIB e discutida hipocritamente pela sociedade. Queremos todos um céu como o de Suely e, se a geladeira já está em casa, de inox e com internet, partimos para a rifa das próprias almas sem constrangimento.

Aí rastejamos nos aeroportos e ruas inundadas. Rastejam também artistas e esportistas por "incentivo" no Congresso, onde deputados e senadores escondem-se como ratos no teto salarial do Supremo. E ainda temos tempo e desfaçatez de jogar pedras em Suelys e Genis.

Chore presidente, milhões de votos e crédito para geladeiras não farão sua versão de Brasil existir, se é que seria a melhor versão. Por aqui, nem o céu é para todos.

JOSÉ HENRIQUE MARIANTE é editor de Esporte.


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