Folha de S. Paulo


Jacques Tati e a resistência ao moderno no interior da França

Sainte-Sévère, cidadezinha agrícola no centro da França. Tem 804 habitantes. Há na praça um hangar tosco de madeira que abriga o mercado desde o século 17. Há também uma padaria, uma farmácia, um jornaleiro-livreiro, dois restaurantes, uma confeitaria –excelente– e um café cuja dona, Françoise, se inquieta pelo conservadorismo no mundo atual: "E no Brasil, como estão as coisas?". "Sobrou algo da democracia participativa no Rio Grande do Sul?".

Nas ruas, muito de vez em quando, um carro passa. A agência imobiliária anuncia casas cujos preços são irrisórios. Não há turismo. Sainte-Sévère, suspensa no tempo e distante de tudo, é o lugar ideal para fugir do mundo. Para cultivar o jardim, como fez o Cândido, de Voltaire.

Divulgação
Cena do filme
Cena do filme "Carrossel de Esperança", do cineasta francês Jacques Tati

Vim ver um amigo velho: são já 45 anos de amizade constante e calorosa. Chama-se Jacques Bonnet. É historiador da arte e escritor. Entre seus livros, três foram editados no Brasil: "O Emblema da Amizade" (Publifolha), policial histórico em que o detetive é o filósofo Giordano Bruno, morto pela Inquisição em 1600; "Fantasmas na Biblioteca "" A Arte de Viver entre Livros" (Civilização Brasileira), declaração de amor à leitura; e "Algumas Historietas: ou O Pequeno Elogio da Anedota em Literatura" (Civilização Brasileira), ensaio sobre episódios divertidos, reais ou inventados, que costumam ser desprezados por gente séria. Jacques Bonnet leva uma vida solitária entre os 35 mil livros que acumulou. Veio para Sainte-Sévère cultivar seu jardim. De livros.

A cidade, bonitinha e provinciana, teve um único fato marcante em sua história. Foi nela que Jacques Tati filmou, em 1947, um filme burlesco e poético: "Carrossel da Esperança" ("Jour de fête"). Há uma edição em blu-ray dele, com três versões: a original em preto e branco, de 1949; a de 1964, em que o diretor acrescenta algumas cenas e colore certos elementos, como guirlandas, bandeiras ou balões; a terceira, em cores. Tati havia filmado as mesmas tomadas duas vezes. Uma delas em cores, por meio de processo experimental. A outra em preto e branco, para garantir. Não pôde tirar os negativos coloridos. Só em 1988 a filha do diretor conseguiu revelar esse material e montá-lo.

Tati se escondera em Sainte-Sévère durante a Segunda Guerra Mundial. Fugia do Serviço do Trabalho Obrigatório, que os alemães impuseram aos jovens franceses. Eles eram enviados à Alemanha como mão de obra para o esforço de guerra. Tati se refugiou em uma casa que já abrigava duas famílias judias. Foi lá que escreveu o roteiro do filme. Depois da guerra, grato aos habitantes da cidade, voltou para realizar seu primeiro longa-metragem.

O filme foi um grande sucesso. Inaugurou uma obra cuja comicidade fina e particular, dispensando quase os diálogos, constitui crítica lúcida e vigorosa contra as seduções da vida que se modernizava. Como no caso de Charles Chaplin, Tati é o protagonista das histórias que inventa. Em "Carrossel da Esperança", faz o papel de um carteiro atrapalhado. Ele assiste a um documentário sobre a eficácia dos serviços postais americanos; sua tentativa de adotar os mesmos métodos é catastrófica e fonte de risos.

O número de filmes de Tati não é grande. Mas seguem e comentam a renovação de uma França que saíra da guerra profundamente arcaica. Nunca se afastou desse caminho, rindo com melancolia da modernidade invasora, atraente e autoritária, que veio para submergir o mundo.

Inventa o sr. Hulot, personagem estabanado e distraído. Seu primeiro filme a cores, "Meu Tio" ("Mon oncle"), de 1958, é um grande triunfo, coroado pelo Oscar. Aqui, ele expõe a classe média seduzida pelos modos de vida modernos. A arquitetura da casa, evocando Le Corbusier, os móveis design e as pretensões novidadeiras contrapõem-se ao humanismo aninhado nos prédios antigos, no modo de vida em que as relações humanas são regradas pela bonomia. Oposição entre o prazer de viver e o estresse dos comportamentos vanguardeiros e artificiais.

"Tempo de Diversão" ("Play Time", 1967) mostra, graças ao riso, que o consumismo retira toda alma e poesia das relações humanas. O sr. Hulot, porque é desadaptado, acusa os ridículos de relações sociais incapazes de enxergarem a si próprias como perversas. Enfim, em 1971, o cineasta apresenta "As Aventuras do Sr. Hulot no Tráfico Louco" ("Trafic"). Nele, os homens se submetem a um novo deus, o automóvel.
Tati decerto se sentiria feliz ao ver que Sainte-Sévère, pequenina e provinciana, não foi levada pela vaga moderna.


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