Folha de S. Paulo


O gosto pela leitura pelos livros de Maria José Dupré

Tive um sobressalto feliz ao ver o volume bem exposto na livraria. A vendedora sabia das coisas; era informada e tinha verdadeira cultura literária. Mas nunca ouvira falar. "Vou ler", disse ela, "me interesso por coisas novas".

Respondi que não era nada novo. Que havia sido um enorme sucesso no Brasil. Mas que a autora caíra num discreto ostracismo, a meu ver bastante injusto.

Tratava-se de "Éramos Seis" (Ática), escrito por Maria José Dupré, como a autora passou a assinar mais tarde. Nos tempos de minha infância e adolescência, as capas traziam "sra. Leandro Dupré", forma meio pernóstica para os dias de hoje, mas que revela uma prudência de época. Interpreto como um aviso: "Atenção, sou mulher casada e séria".

"Éramos Seis", de 1943, fez sucesso imenso e internacional. Foi traduzido para muitas línguas, foi best-seller na Suécia e, em 1945, adaptado para o cinema, na Argentina, por Carlos F. Borcosque, um diretor com relevo na história do cinema latino-americano. Bem que eu gostaria de ver esse filme, hoje raro.

Tornou-se também novelas, todas com sucesso. Lembro-me da primeira, em 1967, Cleyde Yáconis fazia o papel principal. A última, pelo que descubro, data de 1994.

"Éramos Seis" continuou com um novo romance talvez ainda melhor que o primeiro, "Dona Lola", que se passa durante a Segunda Guerra Mundial.

Maria José Dupré, no entanto, não obteve o interesse da crítica mais séria nem dos estudos universitários. Há algumas razões para isso.

Uma delas é seu próprio sucesso. Desprezar a popularidade é um esnobismo intelectual. Ser fácil demais se torna pecado sem remissão. Lembro-me de uma grande professora, referindo-se ao meio universitário: "As pessoas adoram o que não entendem". A recíproca é verdadeira. Maria José Dupré recebeu críticas violentas e venenosas saídas desse meio.

Monteiro Lobato assinalou pela primeira vez a clareza da autora. Diz, em carta a Godofredo Rangel: "Apareceu-nos uma senhora Dupré que está operando uma revolução literária. Está nos ensinando a escrever –e eu muito já aproveitei a lição. Revelou-me um tremendo segredo: o certo em literatura é escrever com um mínimo possível de literatura!".

O romance foi descoberto com entusiasmo justamente por Lobato. Editor, recebeu os manuscritos e, sem conhecer pessoalmente a autora, escreveu um prefácio, e o publicou. Ora, o mundo literário da universidade, herdeiro dos modernistas, via Lobato, o inimigo, com desconfiança. Em resumo: Maria José Dupré nunca foi levada a sério pelos sérios. Não entrou para a história da literatura.

A cultura, no Brasil, teve, e tem, certa dificuldade em perceber o meio que a produz. Fechou os olhos para o mundo, preferiu os exotismos regionalistas ou de classe, os pitorescos arcaicos, tão aptos a criarem raízes nacionais ilusórias.

Maria José Dupré é alguém incomum nesse universo. Possui agudo sentido das descrições humanas e volta-se para o meio urbano, pintando com matizes as diferenças das classes sociais e as diferenças de gênero. Sua narrativa se desenrola sem alarde, despreocupada, como anotações despretensiosas, como banalidades.

Pouco a pouco, porém, o leitor percebe não aventuras ou destinos excepcionais, mas uma sociedade inteira desenrolando-se sob seus olhos. E a precisão dos registros o conduz para o âmbito da história: em seus diversos livros, a autora traça um caminho que vai do século 19 (em "Luz e Sombra"), até os anos de 1950. São minas de ouro para quem quiser constituir a história da vida cotidiana em São Paulo durante esse período.

Espanta-me que os estudos feministas não se tenham debruçado sobre essa obra com interesse maior. Todas as suas protagonistas, ou protagonistas-narradoras, são mulheres. A posição da mulher no divórcio, ou melhor, no desquite ("O Romance de Teresa Bernard", "Vila Soledade"), a autonomia feminina ("Éramos Seis" é dedicado "às mulheres que trabalham"); sua situação dentro da família, desde menina, como moça, esposa, viúva, avó, são esmiuçadas. Até esse surpreendente romance, "Angélica", politicamente incorreto, em que uma adolescente manipuladora e dissimulada inocula uma relação de violento erotismo na vida de um casal de professores sem filhos.

Há ainda seus livros infantis. Eles respondem à nossa percepção atual de respeito aos animais. Com seus pequenos heróis, os cachorrinhos Samba, Pingo e Pipoca, ela ensina a ética que nos humaniza.

Se eu quisesse dar a alguém o gosto pela leitura, começaria pelos livros de Maria José Dupré.


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