Folha de S. Paulo


A beleza secreta na mostra da coleção Helga de Alvear

Aqui vão alguns traços característicos da arte feita hoje, ou ao menos de boa parte dela. O humor, a ironia, a sexualidade, a provocação, o estranhamento e o choque. A isso se assimila, como alimento estético, os estapafúrdios valores que giram na ciranda do mercado artístico. Sem forçosamente afastar a poesia, o mistério e a metafísica, desde que disfarçados por trás da insolência, da bizarrice ou do deboche.

O conjunto contemporâneo agora reunido na Pinacoteca de São Paulo pertence a um mundo oposto. A mostra é expressiva. Fica até 26/9 apenas; quem deixou de ver, não perca.

Todas as obras provêm da coleção constituída por Helga de Alvear, milionária germano-espanhola. A colecionadora tem 80 anos; suas escolhas derivam de uma sensibilidade própria, inserida em outra, mais geral e poderosa.

Refiro-me a uma vertente severa da criação moderna, meio fora de moda. Ela se opõe ao desbunde de hoje. O prazer que essa arte provoca tem medo de dizer seu nome. Deriva de um rigorismo austero. Pressupõe uma convicção de seriedade, palavra que deve ser tomada tanto como oposição ao riso e à alegria, quanto como caráter disciplinar e consciente da própria importância. É uma arte séria que se leva a sério.

(Se dois pequenos quadros de Mel Bochner de 2012 mostram uma superfície rugosa e descuidada, incluindo palavrões, a moldura branca os protege e sacraliza como relicários.)

O comparatismo está em voga hoje, e com ele o encontro inesperado entre obras. Em consequência, os curadores decidiram evitar qualquer ordem convencional, fosse ela cronológica, por país, ou pela classificação dos movimentos. Essa escolha não resultou em contrastes, pois tudo banha na mesma atmosfera sóbria. Um espírito acinzentado paira ali. A tal ponto que uma obra mais viva, como a tela bastante grande de Franz Ackermann, "Uphill Again" (morro acima novamente), de 2013-2015, com sua evidência de tons, parece sentir-se deslocada. Ainda assim, a escolha da colecionadora neste caso foi por um quadro cujos elementos de desordem flutuam, sem muito perturbá-la, diante de uma estrutura ao modo de Sol LeWitt, geométrica e com cores pensadas. Bem mais organizado do que outros do mesmo pintor. Como se Helga de Alvear tivesse pinçado aquele que se acomodava melhor ao seu gosto contido.

Os curadores declararam ter buscado uma mistura de seriedade e de humor nas obras. Tenho, porém, dificuldade de encontrar risos ou sorrisos por ali. Pode surgir num título, por exemplo, "Maquete de um Hotel para os Pássaros", de Thomas Schütte (2006), mas que se refere a uma obra leve, transparente, luminosa, nela própria apenas poética e nada engraçada. Alguém talvez encontre ironia nos tricôs de Rosemarie Trockel (1989): telas recobertas de lã tricotadas em máquina, fazendo alusões à tradição abstrata, a Rothko ou Malevich. Mas não creio em tal ironia. Ao retirar a lembrança da força luminosa que havia em seus referentes, essas abstrações tricotadas neutralizam seduções e evidências de beleza.

De fato, nessa mostra, a beleza se faz difícil. É raro encontrar um momento de lirismo; quando aparece –como na abstração de Gerhard Richter (1971)– é um alívio.

Fazer-se difícil não quer dizer que a beleza esteja ausente. Ela é apenas mais exigente, mais secreta, mais rarefeita, com solicitações intelectuais: não por acaso Helga de Alvear tem um forte interesse pelo minimalismo.

Se não erro –porque a mostra não tem catálogo (ou ainda não tem catálogo, como virou quase costume no Brasil, graças aos "timings" sempre desrespeitados)–, a obra mais antiga é uma pequena aquarela de Kandinsky de 1933, "Estudo para Ligeiramente Juntos". Nada da exuberância que havia nos tempos de "O Cavaleiro Azul". Ao contrário, tudo repousa sobre a linha precisa, sobre o delicado equilíbrio das formas dispostas no branco do papel.

Todas as obras se deixam ler pela chave do rigor austero, uma leva outra a reforçar a severidade. A diligência dos curadores em expor "fora da ordem", como diz o título da mostra, foi em vão: é impossível desordenar tamanha coerência nas escolhas. Elas, as obras, são irmãs, e pertencem ao mesmo tempo fora do tempo. Talvez por isso mesmo pareçam suscitar fantasmas, remeter ao que se foi, ao que morreu: elas subsistem como resíduos discretos do efêmero.

Pela cronologia são longas décadas: entre a aquarela de Kandinsky e os dias de hoje se passaram 86 anos. Não se trata mais de vanguarda, mas de grande e sólida tradição artística.


Endereço da página: