Folha de S. Paulo


Para entender uma obra de arte, é útil observá-la ao lado de outras obras

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Quadro
"Moças Gregas Jogando Bola" (1889), de Frederick Lord Leighton,

Nada melhor do que uma obra de arte para compreender outra. Os museus e exposições sugerem, de modo voluntário ou não, o exercício comparativo. Ali, as classificações da história da arte habitualmente impõem seus parâmetros.

Arte do renascimento, impressionismo ou abstração; arte holandesa, espanhola ou russa; retratos na França do século 18, paisagem inglesa, abstração norte-americana; as naturezas-mortas de Van Gogh, a produção de Hubert Robert, e assim por diante. Nesses casos, a comparação reforça a ordem estabelecida do conhecimento.

Porém, recentemente alguns curadores buscam embaralhar as cartas para, ao juntar obras fora desses critérios, despertar novas centelhas de compreensão.

Dou um exemplo que já é histórico. No ano 2000, Robert Rosenblum organizou uma exposição aproveitando o motivo do centenário: "1900 - Art at the Crossroads" (arte na encruzilhada). Foi apresentada em Londres primeiro, depois em Nova York.

A ideia era elementar, um ovo de Colombo: reunir obras expressivas vindas de todos os horizontes e criadas na proximidade dessa data simbólica. Critério cronológico simples que bastou para revolucionar a percepção. Ao dispor um Toulouse-Lautrec ao lado de um Eakins, um Matisse não longe de um Bouguereau, um Picasso, um Cézanne e um Carolus-Duran na mesma sala, Rosenblum revelou afinidades que ninguém suspeitava. As velhas oposições entre "vanguarda" e "academismo" se dissolveram.

O exemplo dessa mostra excepcional não surtiu grande efeito de imediato. Hoje, ao contrário, quando tantos historiadores e críticos constituem uma verdadeira devoção a Warburg, talvez o maior dos comparatistas, surgem sinais de mudanças nessa direção.

Quatro exposições, uma em Milão, três outras em Paris, indicam esse caminho, e mesmo algum descaminho. No Palazzo Reale de Milão, há um percurso intitulado "Umberto Boccioni (1882-1916): Gênio e Memória", celebração do centenário. Seu norte é a obra registrada como número um no catálogo: o "Atlante Delle Immagini". Boccioni colecionou, num atlas de grande tamanho, imagens de obras que o impressionaram. Faz pensar, irresistivelmente, no "Atlas Mnemosyne", de Warburg.

Ocorre que Boccioni não se interessava apenas pela vanguarda. Juntou muita produção excluída pelos modernos com o título infame de "acadêmica".

Estimulada pelo atlas, a curadoria multiplicou associações pertinentes em todas as salas. Introduziu, portanto, vários outros autores. Para dar uma ideia, o recinto que abriga a célebre "Formas Únicas de Continuidade no Espaço", de Boccioni, acolheu também "O Homem Que Anda", de Rodin, o "Caminhando", de Archipenko, pinturas de Picasso e vários estudos diversos. Como se vê, aquele caminhante futurista de Boccioni ficou em sintonia com a produção moderna que atentava para a captação dos efeitos dinâmicos. Mas eis que, no fundo, uma grande tela do "acadêmico" lord Leighton ("Moças Gregas Jogando Bola", de 1889) se insere sem ruptura nessas mesmas preocupações.

A mesma coisa ocorre em Paris (Orsay), nas mostras sobre Charles Gleyre (o pintor da "barca", que tanto marcou Monteiro Lobato e que, em nossa cultura, se transformou no arqui-inimigo dos modernos) e sobre Henri Rousseau (que saiu de cartaz no último dia 17).

A obra de Gleyre emerge ali num contexto coerente de artistas contemporâneos. Mais: demonstram-se também os seus vínculos com Puvis de Chavannes ou Renoir, que foi seu aluno. Assim, sua "La Charmeuse" (a encantadora) parece claramente um proto-Renoir.

As ligações de Rousseau com Carrà são controláveis porque este último admirava muito o primeiro. Mas laços formais tão diretos como os propostos na exposição surpreendem. Ver, entre outras várias associações notáveis, "A Guerra", de Rousseau, diante do soberbo "A Igualdade Perante a Morte", de Bouguereau, espanta ainda mais. Malgrado os universos culturais que as separam, são duas telas irmãs!

Nisso tudo, há um porém. O intervalo entre uma obra e outra deve ser a terceira margem do mesmo rio. Ora, a febre Warburg pode causar estragos quando se torna moda sem rigor. O Grand Palais, em Paris, apresenta uma mostra de livres associações com o título de "Carambolage" (a tradução aproximada pode ser ricochete). O "Atlas Mnemosyne" de Warburg está, em reprodução, logo na primeira sala. Seguem-se obras heteróclitas agregadas superficial ou obscuramente. Tudo vale, qualquer coisa vale. Como disse uma amiga: "Parece um Warburg bêbado". Para quem quiser ver, as imagens mencionadas estão em: goo.gl/bZVnJt


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